Sinopse: Ao falar Tudo Sobre Minha Mãe, também se fala de questões sobre maternidade, gênero e luto, além d'outras coisas! E ao som de Engenheiros do Hawaii, mais coisas se evidenciam...
Tudo Sobre Minha Mãe/El Deseo/Divulgação |
Um Dia Me Disseram que as Nuvens Não Eram de Algodão - Tudo Sobre Minha Mãe
E O PODER DA RESSIGNIFICAÇÃO
E O PODER DA RESSIGNIFICAÇÃO
Dizem
que depois dos vinte e cinco anos de idade nós paramos de consumir
músicas novas e nossa playlist passa a ser uma mixtape de tudo que
ouvimos até então, e digo mais, após os trinta passamos a ouvir
somente aquilo que estávamos ouvindo entre os quinze e os vinte, e digo isso, pois nesse espaço de tempo eu estava ouvindo
Engenheiros do Hawaii, e sigo escutando até hoje. Desde seu estilo
meio progressivo no início de carreira, passando pelo pop rock do
meio e o término nuns Acústico de fim de carreira, não importando
a fase, essa é uma das minhas bandas preferidas, e o que mais me
chamava a atenção na banda era a letra, as músicas, em sua maioria
compostas por Humberto Gessinger com seu domínio da palavra que para
um jovem embarcando no mundo da música era muito divertido.
Entretanto uma música em especial me chamava a atenção: Somos Quem Podemos Ser.
E
antes dessa pequena introdução ter linhas demais para deixar ser
chamada de pequena (ou de introdução), eu vou direto ao ponto, na
música, do álbum Ouça o que Eu Digo, Não Ouça Ninguém, há um
verso que eu nunca havia compreendido, a intenção dessa construção
para mim não soava bem, era estranho, o verso:
"Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter"
Pois
bem, esse verso não fazia sentido até eu assistir, Tudo Sobre Minha Mãe. Escrito
e dirigido por Pedro Almodóvar de Dor e Glória (esse já citado aqui), o filme Tudo Sobre Minha Mãe é o epítome perfeito de uma
obra que não envelhece — amadurece como um vinho de qualidade. Não
fosse a ausência de smartphones, certamente poderia ser um filme de
época em meio aos produzidos nos dias de hoje. No elenco temos as
recorrentes nas obras de Almodóvar, Cecilia Roth de Maus Hábitos,
Marisa Paredes de A Flor do Meu Segredo e Penélope Cruz de Volver, e
claro vale-se o destaque para Antonia San Juan de O Poço.
Antes
de mais nada, vale-se dizer: A perenidade é possível devido à
atualidade dos discursos em evidência no longa. Fazem-se presentes
questões de gênero, sexualidade, identidade, feminilidade e ruptura
com a ideia de família tradicional, o que, afinal, no momento ao qual vivemos, não deixam de ser pautas expressivas
e substanciais. Se, pois, a duração de uma narrativa está
intimamente ligada à recepção de seus discursos e o quanto eles
ainda fazem sentido para seus espectadores, Tudo Sobre Minha Mãe
está perpetuando no tempo oito de outubro de noventa e nove e continuará por
muitos mais...
Cartaz minimalista do filme |
Na
cinematografia do brasileiro, e também outro recorrente na obra de
Almodóvar, Affonso Beato de Carne Trêmula a tela é tingida por
cores quentes e vibrantes, comuns ao estilo do diretor, elas são
capazes de magnetizar os olhos dos espectadores, dando mais vida
enquanto a película se molda numa história de múltiplas camadas,
passível de ser vista e interpretada por ângulos diferentes —
como qualquer outro texto. Portanto o que exploramos aqui é
considerar a obra um amontoado de textos audiovisuais sobre a
maternidade, o papel da mulher, a perda e a ressignificação, em
vista disso partindo dessa perspectiva, somos convidados a acompanhar
a jornada de Manuela, protagonista cuja vida muda após a fatídica
noite na qual seu único filho, Esteban (que, para fins de
desambiguação no futuro, chamaremos de Esteban II desde agora), é
morto atropelado na saída do teatro onde assistiam à Um Bonde
Chamado Desejo. Com o intuito de extirpar de seu coração o peso de
nunca ter contado ao filho sobre a identidade do pai e ao pai sobre a
existência do filho, Manuela sai de Madrid para ir em busca de
Esteban I, seu ex-cônjuge, progenitor do seu filho morto.
Num
itinerário onde presente e futuro se confundem na escuridão de um
túnel até Barcelona, a protagonista se revela forte e persistente,
apta a transpassar e influenciar o espaço e a história de outras
personagens, auxiliando-as em suas próprias questões e, sobretudo,
sendo auxiliada por elas. Além de Manuela, é tangível que as
coadjuvantes de Tudo Sobre Minha Mãe são, também, mulheres e acima
de tudo, mulheres igualmente resilientes. Agrado, uma
transvestigênere e trabalhadora na indústria do sexo; Huma e Nina,
atrizes de Um Bonde Chamado Desejo — que, indireta e não
intencionalmente, contribuíram para a morte de Esteban II — Irmã
Rosa, mãe de Esteban III cuja missão é ajudar prostitutas, e, por
fim, Lola, pai dos dois “Estebans”.
À
medida que o filme vai sendo narrado por si mesmo, em uma sucessão
de condensações e expansões temporais — não cronológicas —
os acontecimentos são totalmente amarrados pela temporalidade
afetiva e pela memória, são construídas imagens de sororidade, de
identificação, de pertencimento e, não menos importante, de
atribuição de novos significados às experiências pessoais e
coletivas.
As
mulheres da narrativa se apoiam; transmutam entre seus espaços e os
espaços das outras. Seja nos abertos, como num prostíbulo ao ar
livre ou numa praça onde se brincava na infância e hoje se leva o
cão para passear e seja nos fechados, tais quais um teatro ou um
hospital; seja nos abstratos, relacionados não aos lugares
palpáveis, mas àqueles que não se podem ver: aos lugares nos quais
cada personagem ocupa dentro das relações sociais. Independente de
quais origens tenham, os espaços são interconectados como os fios
da teia de uma aranha.
Deste
modo, aqui neste ponto, você deve estar se perguntando:
— Onde
entra Engenheiros do Hawaii nessa história?
E
de fato há uma conexão nesse emaranhado de ideias transpassadas,
pois bem, embasando-se no discurso de Simone de Beauvoir¹, captamos
em Tudo Sobre Minha Mãe o ser mulher indo além do gênero designado em nascimento, o que culmina em uma das melhores cenas já escrita no
cinema espanhol, aos exatos uma hora, dezesseis minutos e treze
segundos, Agrado, interpretada por Antonia San Juan, nos ensina, na
prática, que ninguém nasce mulher, mas torna-se; Se reconhecer
enquanto mulher já é o suficiente para ser uma, e, tudo isso se
sintetiza numa linha de texto carregada de poesia:
— Ficamos
mais autênticas o quanto mais nos parecemos com o que sonhamos ser.
No
filme essa linha de diálogo é mais bela por se tratar de uma
personagem travesti, mas independente das questões de gênero isso
dialoga com muitos, pois somos quem podemos ser a partir dos sonhos
que podemos ter. A partir deste filme a canção fez mais sentido,
além disso, e tão bonito quanto, Almodóvar também costura em sua
colcha de retalhos algo sobre o ser mãe não se conter em apenas no
conceber uma criança; ser mãe é mais que estabelecer um laço
sanguíneo. Ser mãe é a escolha de cuidar, amar, resistir e
respeitar, pois mesmo tendo perdido seu filho em um acidente, Manuela
não deixa de ser mãe em minuto algum do filme; no contraponto ainda
quando possuía a filha viva, talvez a mãe de Irmã Rosa nunca tenha
sido uma mãe.
O
filme passa por morte e vida, e uma vez habilitados a encarar uma
obra como entidade viva, desvinculada à identidade da pessoa
criadora, temos a possibilidade de interpretar esta película como um
discurso de ressignificação das personagens. A volta à cidade de
onde se fugira uma vez, o ato de reassistir a uma peça de teatro
quantas vezes forem necessárias, a oportunidade de contar a um filho
o que não se pôde ao outro, o corpo velho dando vez a um corpo
completamente novo, o perdão para a liberdade ser alcançada. Tudo Sobre Minha Mãe contempla tudo isso em menos de duas horas de tela,
mas em um tamanho tão amplo que possui a competência de ser
verossímil com realidades a quilômetros de distância uma da outra
e a décadas de diferença no fluxo da história...
Assim como uma
música composta em oitenta e oito, durante a redemocratização do Brasil, um
filme feito em noventa e nove por um cineasta livre oriundo das amarras do
Salazarismo e um garoto secundarista em dois mil e seis pensando em como se organizar
politicamente, constroem uma miscelânea atemporal para dar vazão a
pessoa que sou hoje e a cada dia mais perto de ser aquilo
que sonho...
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Tudo Sobre Minha Mãe/El Deseo/Divulgação |