GUERREIROS DA VIRTUDE - UMA SÉRIE DE CONEXÕES ESCRITAS NA LOMBADA D’UMA FITA!
ʚଓ ʚɞ 🦋 "É muito difícil voar quando você tem uma asa quebrada" ;༊
Sinopse: Oferecendo uma análise nostálgica e detalhada, Chuck compartilha a experiência de assistir ao filme Guerreiros da Virtude pela primeira vez, destacando a trama, os personagens e a produção sino-ocidental.
Uma Série de Conexões Escritas na Lombada d’uma Fita! - Guerreiros da Virtude
Masquei um pequeno pedaço de papel até ficar moldável. Fitas VHS usadas e regravadas tinham um pequeno buraco na parte traseira para evitar gravações acidentais. As fitas “virgens” vinham com esse orifício selado. A fita que eu usara já havia sido usada antes. Continha o máximo de filmes possível, sempre gravados no modo “EP”. Poderia tapar o buraco com fita adesiva, mas, na falta dela, utilizei a massa de papel umedecida, ruminada por mim. Ao secar, permitiu que o videocassete gravasse sobre o conteúdo existente.
Isso foi antes de dezoito de julho de dois mil, uma terça-feira.
Poderia ser o último dia antes das férias ou o primeiro depois, mas foi o dia da frase: “O que você vai ser quando crescer, dono de locadora?”. Lembro que na noite anterior foi exibido um filme que muita gente diz ser um “clássico da Sessão da Tarde”, mas eu nunca o vi ser exibido nessa faixa de filmes. Minha primeira vez foi na Tela Quente. Antes mesmo de assisti-lo até a exaustão, gravei-o em VHS logo após escrever na lombada da fita:
— 17/07/00 — Guerreiros da Virtude!
Naquele momento, eu tinha dez anos, tomava mais café que um homem de meia-idade e passava muito tempo assistindo a filmes – hábito que perdura até hoje, um por dia. Nada muda. Assisto aos filmes repetidamente e, involuntariamente, em algumas ocasiões, memorizo cada detalhe. Foi nos detalhes que Guerreiros da Virtude (1997) me conquistou. Logo no início, nosso protagonista é sugado para um submundo chamado Tao através de um portal no esgoto que lembra uma descarga, iniciando sua jornada num Alice no País das Maravilhas com muito kung fu, estruturado no Wu Xing (五行) — os 5 elementos da filosofia chinesa (Água, Fogo, Madeira, Metal, Terra), representados por cada canguru.
Gravar um VHS em EP significava usar o “Extended Play”, configuração que permitia gravar até três vezes mais conteúdo que no modo padrão, o “SP”, o Standard Play. Ao gravar da TV, geralmente rebobinava-se a fita até o começo; esta não poderia ser, pois havia algo no início que eu precisava guardar (outro filme para outro texto). A operação envolvia cálculos precisos: cronometrar o tempo do filme (divulgado no jornal) e cruzá-lo com o tempo disponível na parte apagável da fita, escolhendo a qualidade de gravação. Era crucial garantir que a fita não acabasse antes do filme terminar. Eis o esquema:
SP (Standard Play): Qualidade padrão, menor duração (2 horas/fita), melhor imagem. Filmes originais/alugados geralmente vinham assim.
LP (Long Play): Qualidade intermediária, duração média (4 horas/fita), ninguém realmente usava.
EP (Extended Play): Qualidade mais baixa, maior duração (6 horas/fita). Todas as minhas fitas e dos meus amigos eram gravadas nesse modo.
Guerreiros da Virtude permaneceu naquela fita por muito tempo. Por muito tempo, também, jurei que o filme era australiano, afinal, seus protagonistas eram CANGURUS LUTADORES DE KUNG FU. Sim, você leu certo: CANGURUS LUTANDO KUNG FU. Engano meu. A terra onde britânicos brincaram de texanos não criou essa ótima fantasia infantil com pancadaria. Guerreiros da Virtude é uma produção sino-ocidental, fruto da colaboração entre China, EUA e Canadá. Lançado em mil novecentos e noventa e sete, ano em que Hong Kong deixou o império britânico e retornou à China, e os estadunidense tiveram seu sexto presidente presidente, supostamente, envolvido em assédio sexual; Trivia do dia: De George Washington a Donald Trump oito presidentes dos Estados Unidos foram acusados de algum tipo de “má conduta sexual”.
Agora, voltando ao ritual: após selar o buraco, selecionávamos o canal de gravação. Para fonte externa (outro VHS/DVD), escolhia-se a entrada AV correta (Aux, Input, Line In). Para TV, como era o caso, sintonizava-se o canal correto e programava-se para EP. Imediatamente após programar, eu inseria a fita e pressionava REC e PAUSE simultaneamente. Assim, a gravação iniciava instantaneamente ao soltar o PAUSE. Era mais preciso que apertar REC na hora, evitando o pequeno atraso inicial e a incerteza sobre o começo exato do filme, após novelas ou comerciais.
Dava um certo trabalho por isso apenas filmes “bons” eram gravados, mas esse crivo era falho em alguns momentos — e não era este o caso. O realizador desse filme Ronny Yu, além de dirigir, foi co-produtor consolidando sua carreira nos Estados Unidos. Ele pavimentou o caminho para sucessos como A Noiva de Chucky (1998), Freddy vs. Jason (2003) e Fórmula 51 (2001). Yu dirigiu em ambos os lados do Pacífico, com obras notáveis como O Mestre das Armas (2006), Entre o Amor e a Glória (1993) e Legado da Fúria (1986), este último estrelado por Brandon Lee. O roteiro coube a Michael Vickerman, Hugh Kelley e Li Lianyi – trio que, para mim, não produziu nada tão relevante quanto esta obra-prima singular.
No filme, Ryan, um garoto com problema na perna, tenta se aproximar do futebol fazendo amizade com o capitão do time. Isso o lança numa jornada de autoconhecimento num mundo mágico e perigoso... Habitado por CANGURUS LUTADORES DE KUNG FU.
Apesar do elenco majoritariamente branco, o filme é mais chinês do que estadunidense, e isso o faz se destacar entre tantas produções meia-boca e descerebradas de ontem e de hoje. Mesmo sem aprofundar a história de cada personagem, o filme tem alguns pontos divertidos, destaco especialmente o vilão que, apesar de uma atuação exagerada de Angus Macfadyen de Coração Valente (1995), nos dá uma divertida atuação de Macfadyen elevando o filme. O protagonista Ryan, interpretado por Mario Yedidia de Jack (1996) — diga-se de passagem, o pior filme da carreira de Francis Ford Coppola — não é bem desenvolvido, mas isso não impede o carisma do filme o tornar uma obra cativante, pois em determinados momentos se pede um pouco mais de calma, e nós precisamos apenas assistir CANGURUS LUTANDO KUNG FU.
Naquela tarde, quando cheguei à escola, o dia após a exibição do filme eu estava muito animado e pronto pra falar sobre, já naquela época eu falava demais e não dormia, por isso, quando a professora me chamou para dar visto no meu caderno, aproveitou e perguntou se eu havia acompanhado “o filme de ontem” na TV, falamos bastante sobre “o filme de ontem” e enquanto falávamos ela chamou a próxima da lista Fernanda Alguma Coisa, que após receber o visto no caderno saiu dizendo:
— O que você vai ser quando crescer, dono de locadora? Só fala de filmes!
Eu não lembro ao certo o que falei sobre Guerreiros da Virtude para minha professora e para Fernanda, além do que estava escrito na lombada da fita, mas hoje eu posso afirmar: a película não é ruim, mas também não é boa. Hoje, ela vaga no limbo daqueles filmes que foram massacrados pela crítica sem dó nem piedade e poucos falam a respeito, mas com certeza, se assistiu, se divertiu com ele. Guerreiros da Virtude não avança além de um filme genérico de aventura, o qual para uma criança pode ser um filme surpreendentemente divertido, com personagens de muito carisma escondido embaixo de um design radical e descolado de CANGURUS LUTADORES DE KUNG FU.
Assim, Guerreiros da Virtude não é tão bom quanto eu me lembrava, mas ainda, mais de dezenove anos depois de tê-lo visto pela primeira vez, ele continua brega, bonito e bem ágil, o que o ajuda a ser divertido e prender a atenção de crianças e professoras. Nitidamente, essa obra foi feita com todos os envolvidos dando o melhor de si e não tratando crianças como um público burro. Por exemplo, mesmo o estudo do Centro de Excelência para a Genética dos Cangurus (KanGO) do Conselho de Pesquisa Australiano (ARC, em inglês) apontando que os cangurus são originários da China, o filme não explica o motivo de seus heróis serem cangurus, o que, logicamente, não faz a menor diferença. O que faz a diferença é que estes animais antropomórficos passam sentimento, emoção e uma moral dentro de uma metáfora, dentro de uma crisálida velha e anormalmente grande.
Todos se espantam com a minha habilidade de lembrar os detalhes das coisas, pois ela é inversamente proporcional à minha habilidade em esquecer das coisas. Acho que isso se deve ao fato de que, desde pequeno, escrevo e arquivo as coisas na minha mente. Lembrei-me deste filme não por causa do VHS, que já se apagou há muito tempo, mas por uma série de associações. Lembrei-me de ter duas professoras, Sônia e Márcia. Márcia era professora de exatas e foi ela quem perguntou sobre o filme. Naquele tempo, sentávamos em grupos de quatro alunos, mas meu grupo foi premiado com cinco e meus amigos eram Mariel, Joaquim, Paulo e Marcos. Também havia um calendário em cima da lousa e eu passava muito tempo tentando contar quais daquelas letras tinham mais palavras que se iniciavam com cada uma.
Lembrei-me dos cheiros, do Pau-Brasil plantado por mim naquele ano, naquela escola.
Lembrei-me de tudo de forma muito boa, como um efeito dominó vivenciando vários momentos até chegar à pequena Fernanda Alguma Coisa, de nove anos, dizendo para o Chuck, de dez anos, se ele gostaria de ser dono de uma locadora. Isso, além de mostrar o poder que as locadoras tinham, mostra também a inocência. No vislumbre de um futuro da perspectiva da inocência de uma criança, ela não via uma vida adulta sem locadoras como temos hoje, e esse é o ponto deste texto. Acredito que o que faz Guerreiros da Virtude ser um filme memorável é a inocência em toda a sua construção, até o seu final, quando, apesar de tudo que nosso diabólico vilão Komodo fez, nossos protagonistas lhe estendem a mão e lhe dão o perdão, dizendo que a sua casa é junto aos Guerreiros da Virtude.
Extra:
» A nostalgia das fitas VHS foi citada no artigo Rebobine, Por Favor sobre o filme CineMagia: A História das Videolocadoras de São Paulo.
» G1. Canguru Tem Origem na China, Diz Estudo Australiano. G1, Rio de Janeiro, 30 jun. 2008. Seção: Tecnologia. (Saiu na TILT também).
» Ronny Yu e Fórmula 51 - Baladas, Rachas e um Louco de Kilt foram citados no piloto do Três Minutos Podcast, ouça!
» Solis, Marie. How Many Presidents Have Been Accused of Sexual Assault?. NEWSWEEK, Nova Iorque, 1 nov. 2017. Politica.
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