SINOPSE: Nesta publicação trazemos Chuck e Jordana Olian para um evento especial: Uma edição do Três Minutos Podcast (#3MP) e um ensaio, ambos escritos e publicados juntos analisando as complexas camadas narrativas de Rebuild of Evangelion, destacando a evolução emocional dos personagens e da besta que gritou "EU" no coração do mundo.
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Hideaki Anno e Seu Reconstruir de Evangelion - Um Ensaio Sobre a Besta que Gritou “EU” no Coração do Mundo
序
Em algumas ocasiões, masturbação é só atrito.
Ainda mais se falamos da franquia Evangelion.
Ainda lembro-me da primeira vez que assisti Neon Genesis Evangelion, foram quatro VHS's em uma tarde na casa da minha avó por volta de dois mil e três. Não me lembro ao certo como cheguei até eles, eram quatro episódios em cada fita inesperada e sem ordem cronológica, olhando de hoje acredito que eram cópias piratas, mas não tinha ciência disso, nessa época eu era aquilo ao qual Umberto Eco se refere como Leitor Inocente, um tipo de espectador que lê determinada obra, puramente pelo deleite estético, ficando no raso, na superfície de obra, lugar onde a maioria dos fãs de Evangelion estão; e diga-se de passagem o leitor, aqui se refere ao público que faz algum tipo de leitura de determinada obra, seja audiovisual, escrita e assim por diante, que a interpreta de algum modo. Pois bem, eu nunca fui um fã, nem de animes e nem de Evangelion, ainda mais depois da cena envolvendo masturbação, robô gigante e uma pessoa acamada, (o último episódio assistido no VHS) violência sem função narrativa que estava ali puramente para incomodar. E me incomodou muito.
Só não incomodou alguns fãs que Eco categoriza como Leitor Culto, este tipo se interessa em encontrar mensagem da e possíveis significados, tentando dar significado às intenções do autor, tanto na punheta quanto nas referências a mitologia cristã, quando na verdade Anno faz uma amálgama composta por vários signos, significados e significantes, mas nessa cena, qual o significado dessa cena nessa obra? Nenhum.
Em algumas ocasiões, masturbação é só atrito.
Atrito (cinético, é claro) é a força que resiste no movimento entre duas superfícies em contato. Em contextos de movimento repetitivo, além de calor, o atrito pode causar desgaste, afetando a textura, eficiência e a longevidade da superfície em questão, é esse tipo de desgaste ocorre em franquias como Neon Genesis Evangelion.
Além da série de TV original, composta por vinte e seis episódios e exibida entre 1995 e 1996, a história se repetiu em filmes como Death & Rebirth (1997), uma recapitulação da série com novas cenas e The End of Evangelion (1997) esse feito para ser o final da série em outra perspectiva, mais explícito e menos introspectivo.
E fora do audiovisual, a obra teve mais uma repetição, agora na literatura, o mangá, Neon Genesis Evangelion (1994 - 2013), desenhado por Yoshiyuki Sadamoto (membro do estúdio GAINAX) e publicado, por algum tempo, em paralelo à série de TV, mas acaba seguindo uma narrativa diferente.
Não parando por ai, essa mesma história se repete também em videogames que, canônicos, expandem a mitologia da série original, por exemplo, Neon Genesis Evangelion: 1st Impression (1996), Neon Genesis Evangelion: 2nd Impression (1997) e Neon Genesis Evangelion: The Iron Maiden Second Impact (2006), além de muitos outros. A franquia também se utiliza de merchandising, produtos com uma ampla gama de público, conceito e finalidades, que vão desde figuras de ação até roupas. Evangelion é a Turma da Mônica do Japão.
Hideaki Anno, entre altos e baixos, usou e abusou de sua história, criou e repetiu diversas vezes, numa masturbação cheia de atrito, que para mim causou desgaste, afetando a eficiência e o impacto da obra, isso é, até que em dois mil e sete ele deu início a sua Opus magnum.
破
Em seu livro Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Umberto Eco propõe quatro categorias de leitores, duas delas eu já apresentei e a seguinte das duas anteriores é o Leitor Crítico, esse vai além daquilo proposto pela obra ao entender o contexto ao qual ela foi produzida e às implicações socioculturais disso, pois entendem que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 1859).
Culturalmente, Hideaki Anno e seus contemporâneos foram impactados pela chamada Década Perdida (失われた10年, ushinawareta jûnen), um período de deflação, ocorrido pelo colapso das bolhas imobiliária e financeira no início dos anos noventa; o PIB e salários caem e o Japão fica estagnados por anos. A sensação de desilusão e incerteza impregnou a vida cotidiana da sociedade japonesa, influenciando artistas durante esse período, incluindo o cineasta Hideaki Anno.
Esses elementos socioculturais influenciaram Evangelion desde a pré-produção em noventa e três, no entanto, em noventa e cinco, o Japão foi atingido pelo Grande Terremoto de Kobe, também conhecido como o terremoto de Hanshin-Awaji, ocorrido há dezessete de janeiro de noventa e cinco e de magnitude sete ponto três na escala de Richter, por volta de seis mil e quinhentas pessoas perderam a vida e centenas de milhares foram desabrigadas. No mesmo ano, o Japão também testemunhou um ataque terrorista no Metrô de Tóquio, no dia vinte de março durante a hora do rush, membros da seita Aum Shinrikyo liderados por Shoko Asahara, liberaram um gás chamado Sarin, considerada arma de destruição em massa na Resolução 687 das Nações Unidas, nas linhas que iam para as estações Kasumigaseki e Nagatachô, que passam pela estação de Shinjuku, onde está localizado o edifício do governo japonês, um dos arranha-céus mais altos do mundo, foi concluído em noventa e um (à custa de um bilhão de dólares de dinheiro público num período de recessão) e lembra en passant os prédios retráteis de Evangelion. Veja:
Prédio do Governo Metropolitano de Tóquio | Foto: When In Tokyo |
Esses eventos, somados ao sentimento coletivo do período da década perdida trouxeram reflexões sobre a condição humana, a luta interna e as crises sociais que Hideaki Anno viveu durante esse período de crise, assim como momentos de crise acompanham a criação de Evangelion, essa franquia, libriana, que estreou oficialmente em noventa e cinco, bem no meio da Década Perdida, teve seu revival cinematográfico durante a crise de 2007-2008.
O revival cinematográfico chama-se Rebuild of Evangelion (2007-2021) a equipe de produção junto de Hideaki Anno continua a explorar os mesmos temas das incursões anteriores, mas com uma perspectiva renovada. Hideaki Anno revisita e reinterpreta a sua história mais uma e pela última vez, trazendo novos elementos e aprofundando ainda mais nas complexidades emocionais de suas personagens e a sua própria aprofundando questões como depressão e traumas refletindo talvez uma certa maturidade e uma compreensão mais ampla desses temas por parte de seu idealizador. Hideaki Anno, enfrentou a depressão ao longo de boa parte de sua vida e o assombro disso e da Década Perdida é ronda toda a sua obra, especialmente em como é retratada a luta interna das personagens e a sensação de desesperança perpassa suas histórias. Em noventa e cinco, Hideaki Anno, já com seus trinta e cinco anos, se cobrava em relação a fazer algo relevante como artista e como pessoa, e ele fez, mas esteticamente, pois foi só com Rebuild of Evangelion e suas atualizações e releituras que ele pode oferecer de fato ao espectador uma visão contemporânea e madura das questões que julga pertinente, mostrando como as cicatrizes do passado ainda influenciam o presente de cada um de nós.
Rebuild of Evangelion (2007-2021) é uma tetralogia de filmes que reconta a história de um pai que força seu filho a entrar num robô gigante para lutar contra seres alienígenas; esses filmes são dirigida por Hideaki Anno idealizador da Shin Japan Heroes Universe e a produção é do estúdio de Anno, o Khara, Inc. do curta-metragem (em parceria com o Studio Ghibli) O Gigante Deus Guerreiro Aparece em Tóquio (巨神兵東京に現わる, 2012). Desviando-se da série original e das demais incursões interartes das diversas narrativas da franquia, estes filmes oferecem, em suas seis horas e trinta minutos, uma nova perspectiva ao recontar a história vista em Neon Genesis Evangelion, pois Anno encara a depressão e os outros temas de forma diferente entre uma produção e outra, aliás, é preciso dizer que existe um fenômeno tipicamente japonês: O Hikikomori.
Hikikomori é um tipo de depressão onde indivíduos isolam-se completamente do convívio social por longos períodos, evitando qualquer interação com a sociedade. Essa reclusão extrema é a mesma apresentada por Shinji em Evangelion. Anno sofreu dessa condição e usou a série como uma forma de expressar suas próprias lutas internas e explorar temas de saúde mental junto da complexidade emocional das personagens, especialmente Shinji Ikari, personagem esse que reflete especificamente suas próprias experiências, construindo uma autoficção numa narrativa em carrossel, repetindo-se em seus ciclos utilizando a Mise en Abyme ou narrativa de abismo, pois dentro dos ciclos propostos a história contém elementos que se refletem dentro dela criando uma sensação de profundidade e complexidade, pois em cada revista Hideaki está em giro, similar a um carrossel de movimento constante, onde cada giro revela uma nova camada ou aspecto em direção ao abismo, mergulhando profundamente nos temas sombrios e perturbadores da existência humana, focando nas profundezas do sofrimento, da angústia e das questões existenciais, buscando revelar verdades dolorosas da condição humana. Deste modo, sua obra continua ressoando com muitas pessoas ao redor do mundo, não apenas por sua qualidade técnica, mas também pela profundidade emocional que ele conseguiu transmitir.
A luta de Anno contra a depressão é um testemunho de sua resistência e da importância do apoio, seus companheiros próximos, como o grande diretor Hayao Miyazaki com quem Anno tem uma relação de pupilo e mentor, e o produtor Toshio Suzuki desempenharam um papel crucial no apoio ao diretor durante seus momentos difíceis oferecendo suporte emocional e profissional.
Ele ficou realmente abalado com isso, como se tivesse perdido toda a confiança. Seu coração estava partido, então acreditei que o melhor remédio seria o trabalho criativo. Ele teve que dar um passo à frente, isso significou um novo projeto. Toshio Suzuki em Hideaki Anno: The Final Challenge of Evangelion.
Hideaki Anno teve uma colaboração significativa com o Studio Ghibli ao longo de sua carreira. Ele animou Nausicaä do Vale do Vento (1984) de Hayao Miyazaki e foi responsável diretamente pela cena mais complexa do filme, e não só, ele também dublou Vidas ao Vento (2013) do mesmo diretor, Anno também dirigiu curtas para o Museu Ghibli. Além desses trabalhos, o Studio Ghibli ajudou Anno na produção de Evangelion 3.0+1.0 ao fornecer equipamentos e suporte técnico. Como podemos ver com o vídeo:
Rebuild of Evangelion se sustenta ao explorar a ideia do “refazer” e “perda”, refletindo a sensação de possibilidades não alcançadas, frustração. A própria metalinguagem da consciência de Shinji e das diversas reinterpretação de sua história é similar à investigação de fantasmas culturais de Mark Fisher (1968-2017), em Fantasmas da Minha Vida (2022), Fisher aborda a melancolia, a nostalgia e a sensação de futuros que poderiam, mas não se concretizaram, argumentando que somos, e ao meu ver assim como Shinji, assombrados por possibilidades não realizadas. Acessando a obra de Hideaki Anno percebemos como o realizador revisita não só seu próprio trabalho, mas os de outros como em Shin Japan Heroes Universe, reinterpretando-o cada obra a sua maneira e adicionando novos elementos, ele explora a ideia de Fisher de “fantasmas culturais” que chama de Assombrologia. Fisher atribui uma dimensão política à melancolia, recusando-se a aceitar os horizontes fechados do realismo capitalista e ao reimaginar a Evangelion, Anno oferece uma crítica à conformidade e à não busca por alternativas, trazendo reflexões sobre a condição humana e a alienação, além de dogmas culturais, indo em direção ao oposto do que alguns fãs acabaram fazendo com sua obra, promovendo Hideaki Anno à guru e Neon Genesis Evangelion a um culto, como o próprio Aum Shinrikyo.
Perceba, estes aficionados por Evangelion são o que Umberto Eco chama de Leitor Inocente, enquanto Anno estava buscando por significado e transformação esses otakus queriam a repetição vazia da obra, o chamado fanservice, assim como uma masturbação vazia que, de alguma forma bizarra, é por vezes literal, se esquecendo que em algumas ocasiões, como nessa, é só atrito. O atrito foi tão grande que ao final do terceiro episódio de Rebuild of Evangelion, Hideaki Anno não só recebeu ameaças de morte, como viu na internet pessoas tramando possibilidades de como ceifar sua vida. É nesse momento que Hideaki mergulha na depressão, em suas palavras, ele perdeu a vontade de viver, pensava que não era bom o suficiente para a indústria e a arte, ele até pensou em se matar, mas a perspectiva da dor o impediu.
E que bom, pois assim ele pode produzir sua Opus magnum.
急
Na última categorização de Eco, conhecemos o Leitor de Segundo Nível, que não apenas interpreta a obra, mas também está ciente da complexidade e multiplicidade de significados das diferentes maneiras pelas quais o texto pode ser interpretado pelos outros tipos de leitores. Num mergulho no abismo proposto pela narrativa, levando ao pé da letra o “Show, don't tell” de Hideaki Anno, não importa em qual mídia se você vai consumir um produto de Neon Genesis Evangelion, Anno não vai perder tempo falando e explicando, pois nada ali, está falando algo além do proposto pela narrativa sincrética.
Rebuild of Evangelion é o puro suco de sincretismo, combinando elementos de várias tradições religiosas, filosóficas e culturais para criar uma narrativa complexa e multifacetada, por exemplo, a série utiliza frequentemente explosões cruciformes nas cenas de batalha, especialmente nas explosões dos Anjos, criando uma conexão visual com o Cristianismo e aos clássicos kaijus dos tokusatsu, fenômeno televisivo japonês como Ultraman, Super Sentai e Kamen Rider (Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone), mas não para por aí, também temos nos filmes temos a Seele, organização secreta que frequentemente cita textos proféticos chamados de Manuscritos do Mar Morto, indicando uma referência ao judaísmo e a Bíblia Hebraica; e o mais evidente é a Árvore da Vida da Cabala (קבלה), um modelo para o Projeto de Instrumentalidade Humana (Evangelion: 2.0 You Can (Not) Advance).
O ponto mais interessante nesse esforço de representação do contexto judaico-cristão, está na figura de SEELE e NERV, pois ambas as facções em Rebuild of Evangelion e as mitologias religiosas observam um determinado evento sob perspectivas diferentes, o que leva a divergências significativas em suas crenças, motivações e relações. Para os leigos, o cristianismo acredita que Jesus, a quem chamam de Cristo, é “O Messias” profetizado, cuja vinda cumpriu as profecias do Antigo Testamento, eles veem a crucificação e ressurreição do Cristo como eventos centrais para a salvação da humanidade, enquanto isso, o Judaísmo não reconhece Jesus como “O Messias”, para eles, as profecias do messias ainda não foram cumpridas, e por enquanto aguardam a vinda d'um salvador futuro. No paralelo entre Seele vs. NERV, a Seele, acredita que o Terceiro Impacto ocorreu, cumprindo parte de suas profecias e planos para a Instrumentalidade Humana, seguindo as revelações dos Manuscritos do Mar Morto (Evangelion: 3.0 You Can (Not) Redo).
“O Terceiro Impacto já começou. É o início da nossa ascensão.” Gendo Ikari. Evangelion: 2.0 You Can (Not) Advance.
Por sua vez, a NERV, vê o mesmo evento como um “quase Terceiro Impacto”, pois ele não foi completado, e trabalha para prevenir que um impacto completo ocorra, mantendo suas operações focadas na proteção da humanidade. Assim como o terceiro impacto na tetralogia, a vinda de Cristo é um evento central que é interpretado de maneiras diferentes.
“Evitamos o Terceiro Impacto, mas a ameaça permanece. Devemos nos preparar para o pior”, Katsuragi Misato. Evangelion: 3.0 You Can (Not) Redo.
Ressalta-se nesta narrativa sincrética o tema da repetição, ou seja, ciclos, pois também podemos traçar paralelos com o Budismo, os filmes da série exploram o nascimento, morte como algo cíclico, refletindo por exemplo o Samsara, o ciclo contínuo de nascimento, morte e renascimento que todos os seres vivos experimentam, conceitos encontrados tanto no Budismo quanto no xintoismo, como na obra de Saigyô (1118 - 1190), poeta budista do final do período Heian e início do Kamakura, que se utilizava de metáforas em seus poemas para falar sobre a transitoriedade, solidão e a beleza efêmera da natureza, sofrimento e iluminação. Veja como os ciclos se repetem, Saigyô explora os mesmos temas que Hideaki Anno.
Neste caldeirão de simbolismo, Hideaki usa elementos de diferentes tradições para criar uma narrativa rica permitindo uma interpretação multifacetada, onde cada espectador pode encontrar algo familiar e ao mesmo tempo novo, portanto ao retratar figuras da mitologia judaico-cristã como Adão, Lilith e Anjos como entidades extraterrestres e a Sementes da Vida, Anno acena à hipótese de seres alienígenas antigos que estiveram na Terra, muito popularizada pelo livro Eram os Deuses Astronautas? de Erich Von Däniken, este autor sugere que antigas culturas humanas tiveram contato com civilizações extraterrestres, que foram interpretadas como deuses; assim Rebuild of Evangelion reimagina figuras mitológicas através da lente da ficção científica, espelhando a abordagem de Däniken.
Para ficar claro, em Evangelion, somos apresentados à figura de Adão e Lilith, as sementes da vida. Elas foram criadas juntas por uma Raça Ancestral, a primeira inteligência do universo (deus), e foram enviadas como um testamento para que sua raça não se extinguisse. E a vida brotou de dentro delas os humanos foram criados a partir de Lilith e os Anjos partindo de Adão, e caso as duas caíssem no mesmo lugar cada uma possui um salva guarda para que não germinarem vidas juntos, chamado Lança de Longinus que sela a semente. Essa haste faz uma referência visual a lança que atingiu o tórax de Jesus durante a crucificação e de sua ferida jorrou sangue e água, é a mesma imagem que temos de Lilith crucificada onde de suas entranhas flui o L.C.L. usado na construção dos EVAs, e, como não só do mito judaico-cristão vive o homem, Hideaki Anno soma essa referência visual a uma referência simbólica do xintoísmo dentro da cosmogonia de seus filmes, o Ameno Nuboko (天沼矛). Apresentado nos textos do Kojiki, obra que lida com os mitos fundadores do Japão, o Ameno Nuboko (天沼矛) é uma lança usada por Izanagi e Izanami, divindades do Xintoismo, para agitar as águas e erguer as terras do mar, formando a primeira ilha do arquipélago japonês de onde prolifera a vida, no Rebuild of Evangelion temos a Lança de Gaius usada para reiniciar o mundo. Shinji Ikari utiliza essa lança para criar um novo começo. Shinji Ikari é elevado ao divino escrevendo o “Neon Genesis”, mas não vamos nos antecipar.
Retomemos, os Anjos são prova viva de que não estamos sozinhos no universo, são o antigo testamento de uma civilização muito além da nossa que nos proporcionará escrever um novo testamento para a unanimidade (Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time). Apesar de todo esse sincretismo, Anno também busca na ciência fundamentar sua obra como na figura do Dogma Central, o fator biológico responsável pela transferência de informações de DNA dentro de uma célula. Assim, Anno, ao misturar mitologias e elementos de ficção científica, cria uma obra que reverbera em várias interpretações e teorias, oferecendo um terreno fértil para debates e reflexões.
Contudo, retomando o impacto cultural na obra Hideaki Anno, percebemos que ele nasceu em sessenta em Ube, Yamaguchi, isso é pouco depois do fim da ocupação estadunidense no país, essa ocupação trouxe diversas influências culturais para o país, sobretudo com livros, filmes e programas de TV ocidentais de ficção científica, até mesmo quando conheceu seus companheiros do Gainax Studio, em Kyoto num café com tema Sci-Fi chamado Solaris - referência ao romance de Stanislaw Lem e ao filme de Andrei Tarkovsky, por isso, ao meu ver as repetições que Shinji está preso não estão contidas apenas na franquia, por exemplo, o título do último episódio da série “Sekai no chûshin de 'ai' wo sakenda kemono” (世界の中心でアイを叫んだけもの) em português foi localizado como “A Fera que Gritou 'EU' no Coração do Mundo”, esse título faz referência clara a obra, vencedora do Prêmio Hugo de Melhor Conto em sessenta e nove, “The Beast That Shouted Love at the Heart of the World” de Harlan Ellison. A palavra japonesa para amor é “AI” escrita com o kanji “愛”, mas no título hideaki optou grafar “AI” com katakana “アイ” o qual é a grafia da pronúncia do “I” do inglês, ou seja, “EU”, deste modo o roteirista nos dá um título que tem duas interpretações com duas leituras e ambos os significados são apropriados ao episódio.
Esse estilo de título continua a se estender para Rebuild Of Evangelion, pois os títulos dos filmes da série também são ricos em significado e refletem tanto a narrativa quanto às influências culturais, isto é, o título em japonês, já que nas versões para o Ocidente as escolhas de localização dos títulos empobrece um pouco a obra, mas quando somadas expandem nossas interpretações. Veja, uma das influências de Anno para compor os títulos de sua tetralogia vem do Jo-ha-kyû (序破急), um estilo de modulação e estrutura musical tradicionalmente japonesa de ritmo e desenvolvimento usados para ilustrar a progressão de melodias e deve começar lentamente, acelerar e terminar de forma rápida. Mantenha isso em mente enquanto analisemos filme a filme:
Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone:
No original Evangerion Shin Gekijôban: Jo (ヱヴァンゲリヲン新劇場版: 序) podemos colocar da seguinte forma “Novo Capítulo Cinematográfico de Evangelion: Prelúdio”. O título internacional ao pé da letra é “Você (Não) Está Só” isso sugere a dualidade da existência de Shinji, que se sente isolado ao mesmo que é cercado por outros que compartilham as mesmas lutas, entretanto o título japonês utiliza a palavra “Jo” (序) a qual podemos traduzir como “prelúdio”, indicando que este filme estabelece a base narrativa, com foco na dualidade da experiência do protagonista. Neste filme somos apresentados a um mundo pós-apocalíptico, onde o jovem Shinji Ikari é recrutado por uma organização chamada NERV para pilotar uma arma gigante chamada EVAs com o intuito de enfrentar seus próprios demônios internos e a complexa relação com seu pai, Gendo Ikari, o diretor da NERV. No elenco temos Megumi Ogata de Jujutsu Kaisen 0: O Filme, Yuko Miyamura de Battle Royale e Romi Park de Fullmetal Alchemist o Filme: O Conquistador de Shamballa.
Vale destacar que o worldbuilding de Hideaki e sua equipe iniciam aqui é construído no arquétipo da dualidade do masculino e feminino, mas não como complemento, o que ele cria é a dualidade oposta, o conflito gerado por um pensamento patriarcal, na própria figura de Lilith, o feminino que não é subserviente, é a figura da mãe sendo controlada contida e reprimida pela figura do pai, que por sua vez oprime o filho onde todos os traumas que o filho carrega e que irá se somar a outros no futuro, são feridas causadas pelo pai. Essa dualidade mimetiza a violência da nossa sociedade, mas uma esperança vide o final das personagens femininas nos filmes e no fálico cilindro que a alma dos pilotos de EVA são introduzidos dentro da arma, mais a frente na história quando descobrimos o que é o EVA-01 e a alma de quem foi absorvida a metáfora se expande ao pensarmos como uma espécie de retorno a um útero.
Evangelion: 2.0 You Can (Not) Advance:
No original “Evangerion Shin Gekijōban: Ha” (ヱヴァンゲリヲン新劇場版: 破) podemos localizar “Novo Capítulo Cinematográfico de Evangelion: Quebra”. O título internacional “Você (Não) Pode Avançar” reflete a luta dos personagens para progredir em meio a desafios. O título japonês “Ha” (破) indica “ruptura” ou “quebra”, a segunda fase do Jo-Ha-Kyû onde a referência musical aqui é ao desenvolvimento e à intensificação da narrativa, semelhante ao movimento de um filme musical. Neste ponto, a batalha contra os alienígenas continua, e novos pilotos de EVAs se juntam à luta. Assim como a narrativa, Shinji também começa a desenvolver-se e construir laços, além disso essa “quebra” na progressão indica a ruptura com o continuidade da série original indo por uma nova abordagem. É neste ponto da história que Gendo Ikari diz que pós-segundo impacto eles mataram Deus, pois finalmente descobriram que a vida não foi criada por um deus, mas plantada na Terra através de uma semente viva e consciente por seres extraterrestres.
Neste elenco contamos com Megumi Hayashibara de Cowboy Bebop: O Filme, Fumihiko Tachiki Bleach: The DiamondDust Rebellion e Kotono Mitsuishi Sailor Moon R: O Filme.
Evangelion: 3.0 You Can (Not) Redo:
No original “Evangerion Shin Gekijōban: Kyū” (ヱヴァンゲリヲン新劇場版:Q) em tradução livre “Novo Capítulo Cinematográfico de Evangelion: Q”. O título internacional ficou “Você (Não) Pode Refazer” expressando o arrependimento e a impossibilidade de desfazer o passado, aqui encontramos mais uma metanarrativa, Anno sempre ressalta que ele não pode desfazer e muito menos tem interesse em refazer o que já foi feito, entretanto ele pode RECONSTRUIR (rebuild) e essa é a proposta central desta tetralogia. O título japonês “Kyū” (急) tem a mesma leitura da letra “Q” em inglês e significa “rápido” ou “clímax” é a fase final do jo-ha-kyū, onde reflete a intensidade e a urgência de concluir a narrativa, aqui temos um time skip de catorze anos, Shinji acorda num mundo pós-pós-apocalíptico, perdido, confuso e arrependido diante da impossibilidade de desfazer o passado e sobre o seu papel nessa nova ordem mundial, a NERV e sua organização rival WILLE estão em guerra. No elenco temos Yuriko Yamaguchi de One Piece: Strong World, Akira Ishida de Batman Ninja e Maaya Sakamoto de Ghost In the Shell: O Fantasma do Futuro.
Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time:
No original “Shin Evangerion Gekijōban𝄇” (シン・エヴァンゲリオン劇場版𝄇), literalmente “Novo Capítulo Cinematográfico de Evangelion: 𝄇”. No título internacional “Thrice Upon a Time” é uma referência ao início clássico de qualquer conto de fadas “Once Upon a Time”, ou melhor, “Era uma vez”, “Thrice Upon a Time” seria algo como “Eram três vezes” ou “Foram Três Vezes” são muitas possibilidades, fazendo alusão ao três finais que tivemos na franquia como anime, mangá e cinema, entretanto com uma pequena reviravolta que sugere a ideia das repetições e ciclos. O título japonês inclui o símbolo musical 𝄇, indicando que um retorno ou, no nosso caso, a reinterpretação da história chegou ao fim. Quando esse símbolo é usado numa partitura indica o fim da repetição, sugerindo que a história de Evangelion revisitada e reinterpretada em Rebuild of Evangelion acabou.
Neste filme, enquanto Shinji agoniza sobre o valor de sua existência e seu relacionamento com outras pessoas, o Projeto de Instrumentalidade Humana contínua e cabe a Shinji decidir se aceita um mundo sozinho ou se abraça conexões com os outros, como o clone adolescente sem tato social de sua mãe e um alienígena ancestral na forma de um menino albino, assim enfrentando a pior de todas as batalhas para salvar a humanidade: ESTABELECER UM DIÁLOGO COM SEU PAI.
Hideaki Anno é um diretor de mão cheia, e um autor polígrafo que consegue caminhar entre artes e técnicas. Para produzir o Rebuild of Evangelion, Hideaki e sua equipe utilizaram uma combinação de técnicas tradicionais e modernas, incluindo a captura de movimento para registrar os movimentos de atores reais, que são então traduzidos para animação, essa combinação de técnicas é uma evolução das práticas iniciais de Walt Disney, que usava modelos físicos para animar suas princesas e personagens clássicos como Peter Pan. Somado a isso, Anno utilizou modelos físicos de miniaturas em uma escala de 1/45 para filmar cenas de ação detalhadas permitindo uma maior flexibilidade e controle sobre os ângulos de câmera, processo que permitiu uma maior precisão e controle sobre os movimentos dos EVAs e dos personagens, resultando em uma experiência visual mais imersiva para os espectadores, tanto que há momentos em que se torna difícil distinguir os cenários reais dos cenário de animação.
Em suma, Rebuild of Evangelion é a opus magnum de Hideaki Anno.
𝄇
Houve um momento na vida em que você foi se masturbar pela primeira vez, e, você não fazia ideia de como isso poderia acabar, mas acabou bem - Desejo ao mundo mais masturbações como essa. Entretanto, todas as masturbações subsequentes à primeira, foram apenas uma busca incessante inútil por essa sensação novamente, que nunca mais será sentida.
Às vezes a masturbação só é atrito…
Diferente de Rebuild Of Evangelion, assim como nas outras incursões de Hideaki Anno em sua franquia, não são uma repetição vazia, mesmo que não deixe de promover atrito em alguns momentos, mas quando uma obra coloca tanto peso até na sua nomenclatura veja, o “re do” do título sugere “fazer novamente” algo que já foi feito antes, como uma repetição da mesma ação, enquanto “rebuild” conota a reconstrução de algo, muitas vezes do zero ou a partir de algo, não apenas uma repetição, mas uma renovação.
Rebuild é a renovação de Hideaki Anno, é o seu grito, ele é “a besta que gritou ‘eu/amor’ no coração do mundo” colocando tudo de si em seus personagens, demonstrando a luta interna de cada um e a própria busca por existência e ao gritar ele expressa o desespero por encontrar identidade e auto afirmação no centro de toda a existência e experiência humana.
Como demonstrado, Rebuild of Evangelion é uma história independente da série de TV e do Mangá, mas funciona como fecho para a franquia como um todo o final de Rebuild é o final de Neon Genesis Evangelion e a última cena do filme é Shinji Ikari, após uma intensa introspecção, confrontação e viagem de trem com suas emoções, traumas e pai, finalmente encontra a aceitação de si mesmo e de reconciliação quebrando, finalmente, um ciclo de dor, violência e sofrimento que havia dominado todas as suas existências, isso é Hideaki Anno se reconciliando consigo e com seu público que assim como Gendo só queria ser feliz de novo, como foram na primeira vez que assistiram, não à toa o mundo que Shinji reconstrói é o nosso, um mundo mesmo com seus problemas, é feito de esperança, a cena final na estação de trem é incrível, é um alívio ver Shinji finalmente em paz. Neon Genesis Evangelion, além de um marco temporal é uma obra que pode ser lida e acessada através de várias formas diferentes, um clássico contemporâneo que coloca Hideaki Anno, sem dúvidas, no mesmo nível de seu mestre, Hayao Miyazaki.
>DÄNIKEN, Erich von. Eram os Deuses Astronautas?. Trad. E. G. Kalmus. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1968. 240 p.
>ECO, Umberto. Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
>EDITORIAL. クリエイター 庵野秀明の過去・現在・未来を見る. Wlife Japan, Tokyo, 14 Out. 2021.
> Estúdio Ghibli: Reino de Sonhos e Loucura. Direção: Mami Sunada. Produção: Nobuo Kawakami. Studio Ghibli. Japão: Studio Ghibli, 2013.
>Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone. Direção: Hideaki Anno. Tokyo. Khara, 2007. Streaming. 98 min.
>Evangelion: 3.0 You Can (Not) Redo. Direção de Hideaki Anno. Tokyo. Khara, 2012. Streaming. 96 min.
>FISHER, Mark. Fantasmas da Minha Vida: Escritos sobre Depressão, Assombrologia e Futuros Perdidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2022. p. 288.
>FRANK, Allegra. Neon Genesis Evangelion: Hideaki Anno’s Depression and it’s Impact on the Anime. Polygon, 2019.
>GAINAX; KHARA INC. Evangelion Chronicle. Tóquio: Sony Magazine, 2006 - 07. 30 Vol. p. 960.
>Hideaki ANNO and Hitoshi MATSUMOTO Fireside Chat. Direção: Hiroshi Shinagawa. Tokyo. Amazon Prime Video, 2021. Streaming.
>Hideaki Anno: The Final Challenge of Evangelion. Direção: Aki Kubota. Tokyo, NHK. 2021. Documentário. Streaming.
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>IKEDA, Nobuo. 「失われた30年」に向かう日本. Newsweek Japan, 23 dez. 2010. Coluna.
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>RICARDO, Javier. A Década Perdida do Japão: Uma breve História e Lições Aprendidas. Economia e Negócios, [S.D.].
>TAKEDA, Yasuhiro. The Notenki Memoirs: Studio Gainax and the Men Who Created Evangelion. Houston: ADV Manga, 2005. 200 p.