Sinopse: Neste pequeno ensaio sobre alteridade, árvores e o "primeiro filme" da Disney a ganhar o Oscar de melhor filme, Chuck, fala sobre Nomadland. Além de citar uma das melhores bandas do centro este paulista, Partido dos Poetas Pobres e a música Árvores do grande Joao Augusto Machado.
Humanos Não São Árvores, Mas Que Pena - Nomadland
Humanos não são árvores; humanos têm pés, e isso gera aquilo que representa a vida por completo: o movimento.
A vida é, e sempre foi, sobre isso. Viver é se movimentar e permanecer em movimento.
Minha primeira memória é de um movimento, de mudança, na verdade. Do meu primeiro dia de vida até os sete anos, mudei três vezes dentro de São Paulo – batizada assim em homenagem a um pecador convertido. Aos oito anos, deixei a capital para o interior, indo para uma pequena cidade chamada Quintana, em homenagem ao grande poeta. Aos nove, mudei para outra cidade do interior, um pouco maior, chamada Marília, nomeada em referência a Tomás Antônio Gonzaga. Aos dez, voltei para Quintana. Aos onze, mudamos para uma cidade chamada Padre Nóbrega (essa não sei a quem homenageia), e ainda aos onze, voltei para Quintana. Finalmente, aos quinze, voltamos em definitivo para Marília. Dos quinze aos vinte anos, mudei mais três vezes, desta vez dentro do próprio município. Quando, aos vinte e seis, regressei para São Paulo, lá também mudei algumas vezes. E agora, aos trinta, vou para Assis – cidade que homenageia um capitão do genocídio dos povos indígenas, não o escritor. Antes que me perca nos detalhes, é melhor ir ao ponto. Então, sem mais delongas, quero falar sobre o filme Nomadland (2020), de Chloé Zhao.
Uma mulher por volta de sessenta anos, depois de perder tudo embarca em uma viagem pelo Oeste Estadunidense, o mesmo oeste dos desbravadores, vivendo como nômade, esse filme foi escrito e dirigido por Chloé Zhao de Os Eternos e produzido e estrelado por Frances McDormand de Fargo e Três Anúncios Para Um Crime, o filme é baseado no livro Nomadland: Sobrevivendo aos Estados Unidos no século XXI (2017) da jornalista Jessica Bruder, ele trás relatos da vida de pessoas que optaram por viver o nomadismo após a crise de dois mil e oito.
O povo sofre, o Estado esmaga, e a panela de pressão social explode, ferindo o elo mais fraco dessa relação parasitária. Esse é o capitalismo, baby. Ele é feito de crise, e essas crises vêm e vão enquanto os dias rodam num turbilhão, enquanto as pernas se distraem, indo e vindo sem um lugar para chegar – mas sempre com um ponto para voltar. Sempre andei viajando, por isso Nomadland me agradou. Há muito já não sinto meus pés no chão; qualquer destino me faz andar. E a jornada de Fern, nossa protagonista, é justamente encontrar esse prazer em viajar, desprender-se das amarras do capitalismo (mesmo que obrigada por ele mesmo a fazê-lo) e do viver sedentário. Mesmo sendo uma pessoa transitória, Fern precisa deixar suas âncoras para trás. Afinal, humanos não são árvores.
O filme foi comprado pela Searchlight Pictures em 2019, antes da aquisição da Fox pela Disney. Dito isso, este é o “primeiro filme” distribuído pela Disney Company a levar o Oscar de Melhor Filme para a toca do camundongo – um Oscar merecidíssimo. Aqui, Frances McDormand constrói uma atuação visceral, aproximando o filme de si mesma com elementos pessoais em cena e até morando numa van adaptada. A forma como Chloé Zhao fotografa, com closes e a câmera próxima aos personagens, lembra fortemente o estilo de Jorge Bodanzky de Iracema - Uma Transa Amazônica (1975) que focam o limiar entre ficção e documentário, tornando tudo mais autêntico e gerando uma interação natural. Isso também se deve ao fato de os personagens que interagem com Fern não serem atores ou não serem atores profissionais.
Na introdução, falei de movimento. E esse movimento não foi só de mudanças de casa, mas de viagens também. Sabe, dos oito aos quinze anos, eu sempre passava oito meses no interior e quatro na capital: um mês nas férias de julho e três nas de fim de ano (dezembro, janeiro e fevereiro). Tantas mudanças me fizeram ser uma criança sem raízes, sem sotaque e independente. O único problema – que persiste até hoje – é que, estando em São Paulo, eu era “do interior”, e quando estava no interior, era “da capital”. De forma mais ampla, reforçando que humanos não são árvores, Chloé Zhao também é movimento: nasceu e foi criada em Pequim, depois foi para Londres, antes de se mudar para Los Angeles. Estudou no Mount Holyoke College em South Hadley, Massachusetts, graduando-se em ciências políticas, e depois estudou produção de filmes na Escola de Artes Tisch da Universidade de Nova Iorque – a mesma que Spike Lee dá aula; sim ela foi aluna desse também grande documentarista.
Ser esse tipo de pessoa sem raízes contribuiu para a feitura do filme. Zhao consegue imprimir um teor introspectivo, permitindo-se colocar espaços sem diálogos, criando uma poesia visual que nos permite, enquanto espectadores, viajar com Fern e sentir a liberdade emanando da tela – desde o comentário sobre ver um peixe na cachoeira até nadar sem roupa, viajando sem indicar uma direção, nem mesmo um destino...
É um fato: humanos não são árvores.
E, apesar de isso ser uma pena, possibilita nossas andanças pelo mundo. Também permite ao filme dialogar com o desbravamento e as incertezas da vida na estrada, trazendo planos abertos e cenários semiabandonados que quase emulam o cinema faroeste que mitifica esse oeste explorado pelo capital. Sendo assim, como nem tudo são flores. A fita tem um ponto negativo: perde uma grande oportunidade de discutir a precarização do trabalho e a diferença entre emprego e carreira, tornando tudo muito morno no objetivo de gerar um senso de alteridade com a poesia construída em tela. Falta criticidade, provocação ou, se preferir: tempero. Posso citar vários filmes que construíram ideias semelhantes de forma mais "temperada" – não sobre nomadismo, mas sobre pôr o pé na estrada – como Sem Destino (1969), Na Natureza Selvagem (2007), Na Estrada (2011) e até Bagdad Café (1987), que tem seu tempero a mais.
Embora apontemos a falta de crítica ao sistema capitalista em Nomadland, numa análise rápida pode-se dizer até que o enaltece, pois, sem o sistema, não teríamos povos marginalizados em subempregos e trabalhos temporários que permitem, na perspectiva do filme, esse estilo de vida nômade. Contudo, o filme realmente opta por romantizar o nomadismo, sem deixar suas dificuldades de lado.
E sentir essa poesia e liberdade é prazeroso, pois humanos não são árvores…
Diversas vezes, nossa protagonista é convidada a seguir um caminho diferente do seu. Essa atmosfera me fez lembrar da música “Árvores”, de uma das bandas mais populares do centro-oeste paulista, o Partido dos Poetas Pobres, cujos versos dialogam com o filme:
Nossas vidas não são de ninguém, mesmo que andemos na mesma estrada.
Humanos têm pés e os teus não são meus.
Nossos passos não encontram ninguém, porém andamos na mesma estrada…
Mas humanos não são árvores, é uma pena.
Humanos têm pés e os teus não são meus.
Humanos não são árvores, mas que pena...
Essa música fala muito sobre seguir seu próprio caminho, assim como no filme, apesar da inércia. Inércia é a tendência de um objeto de resistir a mudanças em seu estado de repouso – ou seja, um objeto parado tende a permanecer parado. Podemos concluir com uma análise básica da física: um corpo parado tende, por inércia, a manter-se parado, e a mudança para o movimento é proporcional à força aplicada. Força, na física, é qualquer influência que modifica o estado de repouso de um corpo. Talvez a sinopse do filme leve a crer que a crise de 2008 tenha sido a força motriz de Fern, mas seu verdadeiro ponto de virada – a causa da mudança de movimento (sem spoilers) – ocorre quando ela consegue deixar o passado para trás. O apego a ele a impedia de entender plenamente o novo estilo que abraçara.
Mesmo nômade, ela estava sedentária.
Quando Fern permite que a força a impulsione para frente, ela finalmente caminha aliviada e feliz. Porque o filme é sobre nossas jornadas. Humanos não são árvores, e isso é uma pena, pois humanos têm pés, e os teus não são como os meus. Por isso, tomamos caminhos diferentes e percorremos estradas que nos afastam uns dos outros. Mas isso não é de todo ruim, pois...
Não existe adeus definitivo; a gente sempre se encontra em outro ponto da estrada.
Se curtiu o filme, acesse: Nomadland: Sobrevivendo aos Estados Unidos no século XXI
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