Bacurau - Por favor, Não Fale Brasileiro Aqui!
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Sinopse: Neste artigo, Chuck analisa Bacurau além do “cangaço futurista”, explorando como a obra-prima do cinema brasileiro discute identidade, resistência coletiva e preconceito linguístico como ferramentas de opressão. Costurando referências a Racionais MC's, Carolina Maria de Jesus e Turma da Mônica, o texto critica o colonialismo e a segregação social, usando a fala como símbolo de pertencimento na luta contra a barbárie fascista. Se for ler, leia na paz!
Por favor, Não Fale Brasileiro Aqui!
– Bacurau
Aquilo que nos une é o que nos separa, já parou pra pensar nisso?
Repare em como as pessoas se identificam por grupos e não por linhas imaginárias no chão. A fala é o mecanismo usado por nós para nos comunicarmos usando a língua além de identificar o nosso grupo. Com certeza você já leu Chico Bento, personagem de Mauricio de Souza, representando o povo do campo, um grupo e seu estilo de falar, outro personagem interessante de Mauricio de Souza é o Cebolinha e seu falar “elado”, na imagem a baixo vemos um trecho de Turma da Mônica - Laços (que virou filme e já apareceu aqui, vem ver!).
Pois bem, no excerto entendemos o que foi falado, então o objetivo da fala foi bem executado. Contudo porquê ao vermos pessoas falando de uma forma ou de outra vemos isso com forma errada, feia e ou inculta?
A fala não é apenas um mecanismo usado para se comunicar, a língua nos dá um sentimento de pertencimento, e aqui chegamos ao ponto da união separatória, pois agora chegamos a Bacurau.
AVISO: Se for ler, vai na paz!
O filme se passa no Oeste de Pernambuco daqui a alguns anos, portanto no futuro, os moradores dum pequeno povoado do sertão aos poucos percebem algo estranho e violento na sua região após descobrirem que a comunidade não consta mais no mapa. Agora se organizam para identificar o perigo e criar coletivamente um meio de defesa.
Bacurau é um filme rico em detalhes, e um destes detalhes está em determinado momento do filme onde nos apresentam ao conceito de “Brasil do Sul”, portanto podemos deduzir que neste universo há ou houve uma separação do Brasil e isso quase não é nenhuma novidade pois desde a sua fundação, não faltam movimentos separatistas em terras tupiniquins, hoje muitos desses movimentos se utilizam da língua para defender seus ideais ignorantes e cheios de preconceitos. Para elucidar melhor vamos do macro ao micro, veja, nós falamos português, por tanto estamos inseridos numa comunidade lusofonia, por sua vez brasileiros no Brasil, contudo dependendo da região a qual estamos, nós falamos diferente e dentro destas regiões há mais variações, o Brasil tem uma língua com varias formas de ser falada, veja na imagem a baixo:
Apoiado nos alicerces do realismo fantástico Bacurau é um filme rápido, claro e construído sobre preocupações sociopolíticas brasileiras modernas para apresentar um drama onde assim como a língua falada no Brasil é uma mistura, no filme, uma mistura de muitos gêneros do cinema como o bang-bang (o Western ou NORDESTERN neste caso), terror e gore, comédia, suspense e ficção científica; O filme é escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles de Aquárius (2016) e Mens Sana in Corpore Sano (2011) respectivamente, os dois também trabalharam juntos em um dos meus filmes preferidos da vida Recife Frio (2009) (que você pode assistir de graça, aqui!). A produção é estrelada por Sônia Braga de O Beijo da Mulher Aranha (1985), Udo Kier de Fim dos Dias (1999) e Silvero Pereira de Serra Pelada (2013), além de Bárbara Colen de No Coração do Mundo (2009).
A Trama do filme não é sobre linguagem ou preconceito linguístico, contudo isso se aplica no subtexto da trama, os forasteiros não falam a mesma língua dos bacurauenses, até mesmo os motoqueiros sendo brasileiros não se acham iguais aos nativos do sertão, muito menos acreditam falar a mesma língua. Por isso a defesa das pessoas na cidade só é possível por conta da organização da coletividade construída a partir de uma sensação de pertencimento através da língua, e essa ideia é muito bem apresentada no filme pois não seguimos um protagonista e sim várias pessoas deste coletivo.
Agora, para elucidar melhor essa ideia, pense na música Negro Drama (2002) onde é dito:
“Inacreditável, mas seu filho me imita, no meio de vocês ele é o mais esperto, pois ginga e fala gíria; gíria não, dialeto!”
Neste verso, a pessoa de quem se fala imita o Eu Lírico, consequentemente o “homem da quebrada”, falando suas gírias que por sua vez o autor chama de dialeto. O Eu Lírico composto pelos Racionais MC's utiliza a expressão “dialeto” para reforçar a ideia de pertencimento. O Dialeto é o conjunto de marcas linguísticas, restrito a uma comunidade inserida num conjunto maior de usuários da mesma língua. Por sua vez, Gíria é o conjunto de marcas linguísticas usadas por um determinado grupo, podendo se estender a outros, passando a fazer parte de um uso corrente de uma comunidade maior, porém é uma linguagem informal de um determinado grupo social. Apenas por ironia o uso das duas expressões são distintos, já que seus conceitos são parecidos. Utilizamos gírias num contexto geral de sociedade para vulgarizar determinado seguimento de uma comunidade, isso é, quando se diz que alguém usa gíria é para diminui-lo, por isso na música, se destaca o não falar gíria. Nego Drama, assim como Bacurau evidencia as dificuldades de um determinado grupo de nossa sociedade, e seus preconceitos sofridos, incluindo o linguístico. Por tanto reforçar que se diz um dialeto é reforçar o pertencimento a um grupo.
Não por acaso os vilões do filme não falam a mesma língua dos bacurauenses.
Assim como O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte (1961), Bacurau conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, além de ser selecionado para os principais e mais prestigiados festivais de cinema como Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o Festival de Havana e o Festival de Nova York. A produção chega no patamar de cult ao pincelar debates importantes sobre imperialismo, a opressão do povo e a pobreza, onde a escassez de água e estes problemas se tornam mais reais ainda num Brasil cujo cerne é racista, misógino e xenófobo, cheio de preconceito, não é difícil acreditar que o futuro de Bacurau pode ser o futuro de nosso Brasil, veja a questão acerca do livro Quarto de Despejo e dos dois volumes Casa de Alvenaria escrito pela genial Carolina Maria de Jesus, publicados pela Cia das Letras, os dois volumes de Casa de Alvenaria foram republicados recentemente por um conselho editorial encabeçado pela professora Vera Eunice de Jesus, filha da autora que traz o material de forma mais fidedigna e sem nenhuma adaptação ou corte do modo de escrita e de fala da autora, a qual na primeira publicação de suas obras sofreu um apagamento de sua identidade enquanto, mulher preta, periférica e descendente de escravos.
A filha da autora chama a forma de escrita da mãe de pretuguês termo cunhado pela pesquisadora Lélia Gonzalez, pois muitas vezes no livro a escritora escrevia tal qual falava, com contrações das palavras no melhor estilo Mineirês, e, toda sua essência fora perdida na edição do livro feita por Audálio Dantas. E a questão que fica aqui é: Até qual ponto essa edição do texto foi uma edição derivada de um preconceito linguístico?
O editor e jornalista Audálio Dantas, por bem ou por mal, ao fazer as alterações buscou adaptar o abra ao Mercado Editorial Brasileiro, um mercado burguês e majoritariamente se acha “branco”.
Deixando o paralelo traçado mais claro, em determinada cena de tensão da película, quando o um determinado personagem para de falar inglês e passa a falar português, o antagonista do filme diz “Por favor, não fale brasileiro aqui”. Assim como os invasores rejeitam o “brasileiro” falado em Bacurau, o mercado editorial rejeitou o “pretuguês” de Carolina.
Ambos atos de violência simbólica e colonial.
No filme esse ato de correção é uma clara referência ao colonialismo, mas no nosso dia a dia quando alguém fala errado, comete erros linguísticos ou fala diferente da maioria, nós o corrigimos, porém se a pessoa se fez entender, qual foi de fato o erro?
O objetivo dessa correção foi querer instruir ou preconceito linguístico?
Acredito que ambos.
Na realidade são duas faces de uma mesma moeda enferrujada, cunhada com o complexo de inferioridade e o sentimento de sermos até hoje uma colônia dependente de um país mais “civilizado”, é a mesma necessidade de alguns críticos, a pesar dos pesares, em dizer que Bacurau é fruto de um “Tarantino brasileiro”. É preciso colocar a produção brasileira em paralelo a estadunidense para de fato dar valor à ela.
A língua é algo volátil, uma massinha de modelar na mão de uma criança criativa, construída a partir da transformação da sociedade como um todo, dessa maneira enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência da mesma exija desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover uma língua única e uniforme é hipócrita e cínica apenas para propor uma segregação intolerante e ignóbil, como vemos em Bacurau.
Aliás, Bacurau não é uma obra-prima apenas por tocar Night (2019) de John Carpenter ou por tocar Gal Costa, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, não é obra-prima por replicar a introdução de Mad Max (1979), ou as transições de Star Wars (1977) e o estilo de foco de Brian De Palma (dioptria de foco), além dos zoom-in do cinema italiano e uns close-ups à la Bergman. A produção é uma obra-prima pelo seu olhar autoral, mesmo com tantas referencias, mostrando o cangaço futurista, corpos nus fora do padrão e o herói de ação não-heteronormativo, é obra-prima por sua violência de efeito catártico, por convidar o público a pensar, por ser extraordinário, irreverente e um cinema de alta qualidade. Bacurau é uma obra-prima ao representar um Brasil no futuro não só resistindo à barbárie fascista que sempre esteve aí, mas revidando.
Bacurau é obra-prima pois dá esperança para lutarmos no presente.
Portanto, sigamos falando a mesma língua.
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA/LEITURA ADICIONAL(Clique para ser direcionado!):
» CAFAGGI,Lu; CAFAGGI, Vitor. Graphic MSP Turma da Mônica – Laços. Osasco:Panini/Mauricio de Souza Editora, 2013.
» Preconceito Linguístico: O que é, como se faz. 50. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
» JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria - Vol. 1: Osasco, São Paulo: São Paulo, Companhia das Letras, 2021.
» JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria - Vol. 2: Santana, São Paulo: São Paulo, Companhia das Letras, 2021.
» JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – Diário de Uma Favelada. São Paulo: São Paulo: Ática, 2021.
» Podcast EXPRESSO ILUSTRADA
» Racionais MC's Negro Drama
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