A dança é a quinta das sete artes clássicas. Ela é uma arte cênica, e a técnica de dançar compõe-se por um conjunto organizado de movimentos ritmados do corpo, acompanhados por música ou não. Movimentos ritmados fazem parte da formação da classe operária; fábricas, de modo geral, necessitam de uma mão-de-obra capaz de seguir movimentos ritmados. O conceito de dança transcende a mera expressão artística, encontrando eco na própria natureza do trabalho, assim como as ideias marxistas ecoaram na primeira metade do século XX, onde as artes tinham o Materialismo Histórico Dialético como base teórica e o ambiente fabril como recurso estético.
A teoria, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels, sugere a realidade como um processo de constante mudança e conflito, pois “a história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe” (p. 10). Deste modo, neste texto, eu pretendo demonstrar um certo zeitgeist de todo o século XX, usando como base Flashdance - Em Ritmo de Embalo (1983), Dirty Dancing - Ritmo Quente (1987) e Footloose - Ritmo Louco (1984), costurando tudo com o Neo-Realismo Português e seus paralelos globais.
Estes filmes da década de oitenta, apesar dos pesares, têm uma subtrama de luta de classes, abordando o drama de personagens trabalhadores de maneiras distintas, mas interessantes. Eles retratam contradições sociais e econômicas, destacando a dicotomia entre dominados e dominantes. E este mesmo elemento que pairou nos anos anos oitenta e que proporcionou a feitura desses filmes é o mesmo o qual, no contexto do neo-realismo Português, proporcionou aos artistas, tanto no ocidente quanto no oriente, explorar as condições materiais de produção de vida da classe trabalhadora e a dar voz a luta contra a opressão. Veja:
Dirty Dancing - Ritmo Quente: Acompanhamos a relação entre Baby, uma jovem judia de classe média, e Johnny, um instrutor de dança de classe baixa. Desta forma abordando as tensões entre classes sociais e o preconceito sofrido por Johnny devido à sua origem, destacando barreiras socioeconômicas.
Flashdance - Em Ritmo de Embalo: Alex Owens, uma soldadora durante o dia e dançarina à noite, movida pelo amor à dança, ela consegue equilibrar a dupla jornada de trabalho enquanto persegue o sonho de ingressar em uma prestigiada escola de dança. Ao mesmo tempo vive um conto de fadas.
Footloose - Ritmo Louco: Ren, um jovem estudante-trabalhador representante de uma juventude castrada, busca expressão e liberdade em meio a uma comunidade repressiva gerida por conselho municipal reacionário.
Nesta visão, a luta do proletariado é a luta por justiça social, em Portugal, os autores neo-realistas assim como os cineastas envolvidos nos filmes se posicionam ao lado da classe trabalhadora, expressando suas dificuldades e aspirações em suas obras na busca do engajamento da classe operária.
Os neo-realistas portugueses retratavam a vida cotidiana dos trabalhadores, esse enfoque na realidade concreta e nas experiências diárias dos oprimidos é uma aplicação prática das teorias marxistas nas artes, tendo como traço comum uma “(...) problemática do tipo sociológico (...)” (ibid., p. 124). Entre as influências neorrealistas, destacam-se o teórico político Nicolau Bukharin e o romancista Graciliano Ramos, o mais apreciado pelo movimento e um dos maiores nomes da literatura brasileira.
Em Portugal, as maiores expressões do neo-realismo ocorreram principalmente na literatura, no cinema podemos voltar o olhar para o Neorrealismo Italiano (1943-1950), Realismo Socialista Soviético (1930-1960) e o Cinema Novo Brasileiro (1960-1970), além da Nouvelle Vague (França, 1958-1964) e, se forçarmos um pouquinho, até a Nova Hollywood (EUA, 1967-1980). E são essas ondas cinematográficas que chegam como marolas nos anos oitenta produzindo Footloose - Ritmo Louco (1984), Dirty Dancing - Ritmo Quente (1987) e Flashdance - Em Ritmo de Embalo (1983).
As artes na primeira metade do século XX destacam uma visão seca da condição humana, refletindo suas complexidades através de uma narrativa que explora temas acerca do proletariado (urbano e rural), entretanto, nas palavras de Dmitry Pisarev, citadas por Lenin, Ex-Presidente do Conselho do Comissariado do Povo da União Soviética em seu livro O Que Fazer? (1902).
Se o homem fosse, completamente desprovido da faculdade de sonhar, se não pudesse de vez em quando adiantar o presente e contemplar em imaginação o quadro lógico e inteiramente acabado da obra que apenas se esboça em suas mãos, eu não poderia decididamente compreender o que levaria o homem a empreender e realizar vastos e fatigantes trabalhos na arte, na ciência e na vida prática. (Lenin, 1977. P,95).
Sendo assim, Footloose - Ritmo Louco, Flashdance - Em Ritmo de Embalo e Dirty Dancing - Ritmo Quente utilizam a dança não apenas como uma forma de expressão artística, mas também como um símbolo dos sonhos de seus personagens. Nos três filmes, a dança representa o elemento onírico dos desejos dos protagonistas, refletindo suas aspirações e destacando as desigualdades presentes na sociedade, bem como a dificuldade de alcançar esses sonhos.
A dança é uma forma universal de expressão que transcende barreiras culturais, sociais e econômicas. Em muitas culturas, ela é usada para expressar emoções, contar histórias e preservar tradições. Para os trabalhadores ao redor do mundo, a dança oferece, principalmente no happy hour, uma válvula de escape do cotidiano frequentemente árduo, repetitivo e ritmado. Seja através de danças folclóricas, urbanas ou de salão, a dança permite os indivíduos expressarem suas experiências pessoais e coletivas, criando um senso de identidade e comunidade.
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Footloose/Paramount Pictures/Divulgação |
Assim como em Footloose - Ritmo Louco, onde acompanhamos Ren, interpretado por Kevin Bacon (de O Ataque dos Vermes Malditos, 1990), ao se mudar de Chicago, um polo industrial, para a pequena e conservadora cidade fictícia de Bomont, o jovem vai à igreja, depois para a escola e, em seguida, arruma um emprego de operário num armazém local de cereais, onde, através da dança, começa a desenvolver uma amizade com Willard, interpretado por Chris Penn (de Cães de Aluguel, 1992), e a integrar-se na comunidade local. Dirigido por Herbert Ross (de A Garota do Adeus, 1977), o protagonista logo se torna um catalisador para a mudança social ao lutar contra a proibição da música rock e da dança imposta pelo reverendo Shaw, interpretado por John Lithgow (de Risco Total, 1993). As dinâmicas sociais são profundamente influenciadas pela rigidez moral e pelo controle autoritário exercido pelos adultos da cidade. Podemos propor um paralelo, guardadas as devidas proporções, com o neo-realismo português: a resistência da juventude, liderada por Ren, é um poderoso exemplo de como organizações secundaristas podem se impor contra a opressão e a organização política que não defende os interesses de forma democrática.