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A TRINCA RÍTMICA DOS ANOS OITENTA: Flashdance, Dirty Dancing e Footloose

Neste artigo, Chuck analisa os filmes Dirty Dancing - Ritmo Quente, Footloose - Ritmo Louco e Flashdance - Em Ritmo de Embalo, costurando tudo com o Neorrealismo Português. Desta forma refletindo sobre a luta de classes e a resistência dos trabalhadores através da arte como forma de expressão, resistência e transformação social.

Dirty Dancing/Footloose/Flashdance/Divulgação


A Trinca Rítmica dos Anos Oitenta: Uma análise, pouco embasada, sobre Flashdance, Dirty Dancing e Footloose e a dança como expressão de resistência.


A dança é a quinta das sete artes clássicas. Ela é uma arte cênica, e a técnica de dançar compõe-se por um conjunto organizado de movimentos ritmados do corpo, acompanhados por música ou não. Movimentos ritmados fazem parte da formação da classe operária; fábricas, de modo geral, necessitam de uma mão-de-obra capaz de seguir movimentos ritmados. O conceito de dança transcende a mera expressão artística, encontrando eco na própria natureza do trabalho, assim como as ideias marxistas ecoaram na primeira metade do século XX, onde as artes tinham o Materialismo Histórico Dialético como base teórica e o ambiente fabril como recurso estético.
A teoria, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels, sugere a realidade como um processo de constante mudança e conflito, pois “a história de todas as sociedades até agora tem  sido a história das lutas de classe” (p. 10). Deste modo, neste texto, eu pretendo demonstrar um certo zeitgeist de todo o século XX, usando como base Flashdance - Em Ritmo de Embalo (1983), Dirty Dancing - Ritmo Quente (1987) e Footloose - Ritmo Louco (1984), costurando tudo com o Neo-Realismo Português e seus paralelos globais.
Estes filmes da década de oitenta, apesar dos pesares, têm uma subtrama de luta de classes, abordando o drama de personagens trabalhadores de maneiras distintas, mas interessantes. Eles retratam contradições sociais e econômicas, destacando a dicotomia entre dominados e dominantes. E este mesmo elemento que pairou nos anos anos oitenta e que proporcionou a feitura desses filmes é o mesmo o qual, no contexto do neo-realismo Português, proporcionou aos artistas, tanto no ocidente quanto no oriente, explorar as condições materiais de produção de vida da classe trabalhadora e a dar voz a luta contra a opressão. Veja:
  • Dirty Dancing - Ritmo Quente: Acompanhamos a relação entre Baby, uma jovem judia de classe média, e Johnny, um instrutor de dança de classe baixa. Desta forma abordando as tensões entre classes sociais e o preconceito sofrido por Johnny devido à sua origem, destacando barreiras socioeconômicas.
  • Flashdance - Em Ritmo de Embalo: Alex Owens, uma soldadora durante o dia e dançarina à noite, movida pelo amor à dança, ela consegue equilibrar a dupla jornada de trabalho enquanto persegue o sonho de ingressar em uma prestigiada escola de dança. Ao mesmo tempo vive um conto de fadas.
  • Footloose - Ritmo Louco: Ren, um jovem estudante-trabalhador representante de uma juventude castrada, busca expressão e liberdade em meio a uma comunidade repressiva gerida por conselho municipal reacionário.

Nesta visão, a luta do proletariado é a luta por justiça social, em Portugal, os autores neo-realistas assim como os cineastas envolvidos nos filmes se posicionam ao lado da classe trabalhadora, expressando suas dificuldades e aspirações em suas obras na busca do engajamento da classe operária.
Os neo-realistas portugueses retratavam a vida cotidiana dos trabalhadores, esse enfoque na realidade concreta e nas experiências diárias dos oprimidos é uma aplicação prática das teorias marxistas nas artes, tendo como traço comum uma “(...) problemática do tipo sociológico (...)” (ibid., p. 124). Entre as influências neorrealistas, destacam-se o teórico político Nicolau Bukharin e o romancista Graciliano Ramos, o mais apreciado pelo movimento e um dos maiores nomes da literatura brasileira.
Em Portugal, as maiores expressões do neo-realismo ocorreram principalmente na literatura, no cinema podemos voltar o olhar para o Neorrealismo Italiano (1943-1950), Realismo Socialista Soviético (1930-1960) e o Cinema Novo Brasileiro (1960-1970), além da Nouvelle Vague (França,  1958-1964) e, se forçarmos um pouquinho, até a Nova Hollywood (EUA, 1967-1980). E são essas ondas cinematográficas que chegam como marolas nos anos oitenta produzindo Footloose - Ritmo Louco (1984), Dirty Dancing - Ritmo Quente (1987) e Flashdance - Em Ritmo de Embalo (1983).
As artes na primeira metade do século XX destacam uma visão seca da condição humana, refletindo suas complexidades através de uma narrativa que explora temas acerca do proletariado (urbano e rural), entretanto, nas  palavras de Dmitry Pisarev, citadas por Lenin, Ex-Presidente do Conselho do Comissariado do Povo da União Soviética em seu livro O Que Fazer? (1902).
Se o homem fosse, completamente desprovido da faculdade de sonhar, se não pudesse de vez em quando adiantar o presente e contemplar em imaginação o quadro lógico e inteiramente acabado da obra que apenas se esboça em suas mãos, eu não poderia decididamente compreender o que levaria o homem a empreender e realizar vastos e fatigantes trabalhos na arte, na ciência e na vida prática. (Lenin, 1977. P,95).

Sendo assim, Footloose - Ritmo Louco, Flashdance - Em Ritmo de Embalo e Dirty Dancing - Ritmo Quente utilizam a dança não apenas como uma forma de expressão artística, mas também como um símbolo dos sonhos de seus personagens. Nos três filmes, a dança representa o elemento onírico dos desejos dos protagonistas, refletindo suas aspirações e destacando as desigualdades presentes na sociedade, bem como a dificuldade de alcançar esses sonhos.
A dança é uma forma universal de expressão que transcende barreiras culturais, sociais e econômicas. Em muitas culturas, ela é usada para expressar emoções, contar histórias e preservar tradições. Para os trabalhadores ao redor do mundo, a dança oferece, principalmente no happy hour, uma válvula de escape do cotidiano frequentemente árduo, repetitivo e ritmado. Seja através de danças folclóricas, urbanas ou de salão, a dança permite os indivíduos expressarem suas experiências pessoais e coletivas, criando um senso de identidade e comunidade.
Footloose/Paramount Pictures/Divulgação
Assim como em Footloose - Ritmo Louco, onde acompanhamos Ren, interpretado por Kevin Bacon (de O Ataque dos Vermes Malditos, 1990), ao se mudar de Chicago, um polo industrial, para a pequena e conservadora cidade fictícia de Bomont, o jovem vai à igreja, depois para a escola e, em seguida, arruma um emprego de operário num armazém local de cereais, onde, através  da dança, começa a desenvolver uma amizade com Willard, interpretado por Chris Penn (de Cães de Aluguel, 1992), e a integrar-se na comunidade local. Dirigido por Herbert Ross (de A Garota do Adeus, 1977), o protagonista logo se torna um catalisador para a mudança social ao lutar contra a proibição da música rock e da dança imposta pelo reverendo Shaw, interpretado por John Lithgow (de Risco Total, 1993). As dinâmicas sociais são profundamente influenciadas pela rigidez moral e pelo controle autoritário exercido pelos adultos da cidade. Podemos propor um paralelo, guardadas as devidas proporções, com o neo-realismo português: a resistência da juventude, liderada por Ren, é um poderoso exemplo de como organizações secundaristas podem se impor contra a opressão e a organização política que não defende os interesses de forma democrática.

Inspirado em eventos reais, a proibição de dança em Elmore, uma cidade de Oklahoma, remonta ao final do século XIX. Naquela época, promulgavam-se proibições de dança como forma de coibir o consumo de álcool, que, segundo cristãos, contribuía para o sexo fora do casamento. Entretanto, Oklahoma detém a segunda maior população nativo-americana do país. Sabendo da correlação racista e estereotipada que o homem branco faz entre álcool e indígenas, podemos ver essas proibições como políticas visando o apagamento histórico dessas culturas. Assim, desde 1898, foi somente no ano letivo de 1979-80 que os alunos da Elmore City High School levaram a proibição ao conselho escolar, dividido entre Metodistas e Batistas, assim como a cidade era “amargamente dividida”, segundo Rachel Bailey, ex-prefeita da cidade (2001-2005) e aluna da última turma proibida de dançar. O roteirista Dean Pitchford (de A Um Passo da Fama, 1980) foi para a cidade de Elmore e criou alguns personagens baseados em moradores locais, registrando minimamente a força da organização política da juventude secundarista e da expressão artística.

Assim como Pitchford buscou representar a realidade social em seu roteiro partindo de um evento real, os artistas neo-realistas portugueses também fizeram, mas de uma forma pragmática e sem idealizações, muitas vezes focando apenas nas representações das lutas diárias e nas injustiças sociais. Esse movimento artístico, também teve expressão no cinema, como no filme O Trigo e o Joio (1965) de Manuel Guimarães, o cinema português procurou conscientizar o público sobre as condições de vida dos operários e dos campesinos, promovendo uma arte engajada e de caráter pedagógico.
Agora, para não perdermos o ponto, é preciso ter em mente que o neo-realismo português surgiu nos anos de 1930, no rescaldo da crise financeira de 1929, e perdurou até meados dos anos 70, abrangendo temas como dificuldades econômicas, desigualdade social e a luta da classe trabalhadora. Foi uma resposta artística às condições materiais e ao contexto político, opondo-se ao Estado Novo de Antônio de Oliveira Salazar e à literatura presencista. O movimento acompanhou o cenário literário, que passou de um individualismo (marca do Presencismo) para ideias mais coletivistas, com inspiração marxista. O neo-realismo focava na realidade objetiva, alinhando-se com a crítica marxista ao idealismo e promovendo uma perspectiva de união. Na literatura, destacam-se três obras: Gaibéus (1939) de Alves Redol (1911-1969), considerado o marco inicial do neo-realismo português; Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes, a obra mais emblemática do movimento; e Seara de Vento (1958) de Manuel da Fonseca, que aborda a vida dos camponeses e suas lutas contra a opressão e a inferioridade social impostas.
Essas obras apresentam muitas semelhanças com Dirty Dancing - Ritmo Quente, o filme aborda explicitamente a divisão social, evidenciando a marginalização dos trabalhadores do Kellerman's Resort, que são calados e relegados às áreas menos favorecidas, destacando as disparidades econômicas e sociais. A trama parte ficção, parte registro biográfico se desenvolve com a protagonista Baby, interpretada por Jennifer Grey (de Curtindo a Vida Adoidado, 1986), uma jovem de família tradicional de classe média. Ao se envolver com Johnny, interpretado por Patrick Swayze (de Ghost - Do Outro Lado da Vida, 1990), um instrutor de dança e funcionário do resort, ela se aventura nesse mundo marginalizado, aprendendo uma dança suja. A dança no filme serve como um poderoso meio de expressão e subversão, com coreografias desenvolvidas por Kenny Ortega (de High School Musical, 2006-2008) que combinam movimentos fluidos e sensuais, contrastando com a rigidez das normas sociais representadas. As normas de trabalho também ressaltam a inferioridade com a qual os trabalhadores são tratados, eles não devem falar com os hóspedes nem interagir fora da aula de dança.
Dirty Dancing/Vestron Pictures/Divulgação
O relacionamento entre Johnny e o pai de Baby, Dr. Jake Houseman, interpretado por Jerry Orbach (de Soldado Universal, 1991), é tenso, pois o pai vê Johnny como alguém socialmente inferior, desconfia dele, desaprova e atribui ao jovem o aborto clandestino. A problemática do aborto é um ponto crucial do enredo, onde Penny, interpretada por Cynthia Rhodes (de Flashdance - Em Ritmo de Embalo, 1983), colega de Johnny, enfrenta uma gravidez indesejada e recorre a um aborto. Este incidente, apesar de ser apenas um catalisador para mover a história, não é tratado de forma moralista pela roteirista Eleanor Bergstein (de Let It Be Me, 1995). O roteiro é uma autoficção que evidencia a realidade dura e perigosa na qual mulheres da classe trabalhadora são jogadas ao serem privadas de atendimento médico especializado por não terem recursos suficientes, um sistema de saúde adequado e autonomia sobre o próprio corpo.
A cinematografia de Jeffrey Jur (de Casamento Grego, 2002) utiliza a luz e o enquadramento para destacar a intimidade e a paixão entre os personagens. Sua fotografia capta tanto a homogeneização e a branquitude do resort quanto a vibrante diversidade das áreas dos trabalhadores e a pluralidade de cores, onde a dança, mais uma vez, se manifesta como uma importante ferramenta de socialização e união. Em muitos países latino-americanos, por exemplo, a dança é parte integral das celebrações comunitárias, permitindo que os trabalhadores compartilhem suas alegrias através do movimento. Dirty Dancing é um conto de fadas que usa o contraste entre estilos de dança para demarcar a luta de classes.
Assim como o neo-realismo português também demarcou, mas de forma mais veemente a luta de classes ao refletir na sua abordagem às questões sociais e a crítica ao capitalismo. Sendo assim, vamos começar a construir um paralelo global.

Perto de Portugal, temos a Itália e seu neorrealismo com Ladrões de Bicicletas (1948) de Vittorio De Sica, que aborda a luta de um homem para sustentar sua família no pós-guerra, em meio a ladrões e seu dilema moral. Portanto, não só em Portugal, mas também em outras regiões da Europa, as influências marxistas penetraram. Na França, a nouvelle vague destaca-se com filmes como Os Incompreendidos (1959) de François Truffaut, que aborda criticamente a juventude e a alienação social. Fora da Europa, encontramos exemplos como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha, um dos filmes mais importantes do Cinema Novo, abordando temas de injustiça social e resistência.
Para expandir ainda mais a discussão, proponho irmos até a Ásia. Onde encontramos a Literatura Proletária Japonesa, um movimento literário que surgiu durante um período de intensa industrialização e depressão econômica após a Primeira Guerra Mundial. Focada na classe trabalhadora e influenciada pelo marxismo, semelhante ao neo-realismo português, essa (literatura se caracteriza por textos curtos, muitas vezes colados em paredes públicas com ilustrações, conhecidos como ficção de parede, ou Kabe Shôsetsu” (Afonso; Watanabe; Morelat, pág, 150). Visando conscientizar os trabalhadores sobre suas condições, essas leituras podiam ser coletivas, promovendo discussões e enfatizando a vida dos trabalhadores, incluindo mulheres e crianças. Autores como Sata Ineko (1904-1998) destacaram-se ao retratar essas realidades, buscando mudanças sociais imediatas através da literatura. Da Fábrica de Doces (1942) de Sata Ineko pode ser comparado a Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes, na medida em que ambos retratam a vida de crianças trabalhadoras. Entre os principais autores, além de Ineko, estão Kobayashi Takiji (1903-1933), Nakano Shigeharu (1902-1979) e Hayama Yoshiki (1894-1945).
A literatura proletária japonesa floresceu nas décadas de 1920 e 1930, e apesar de ter sido reprimida pelo governo militar da época, a literatura proletária deixou um legado significativo na literatura japonesa. Um exemplo marcante dessa corrente é a obra Kanikôsen: O Navio Caranguejeiro (1929) de Takiji Kobayashi, que foi adaptada para o cinema em 1953 no filme homônimo de Sô Yamamura, estrelado por ele mesmo. Em 2009, houve uma refilmagem dirigida por SABU, vulgo Hiroyuki Tanaka.

Donald Keene (1922-2019), especialista em literatura e cultura japonesa, definiu a Literatura Proletária como um movimento literário caracterizado por seu compromisso político e social. Os escritores desse movimento, muitos dos quais eram filiados ao Partido Comunista do Japão (日本共産党), não apenas refletiam as condições de vida dos trabalhadores, mas também buscavam inspirar mudanças sociais e políticas. Keene reconheceu a importância histórica e social da literatura proletária, mas não via valor artístico nas obras. Para ele, embora fossem poderosas ferramentas políticas, muitas vezes careciam da sofisticação literária e da profundidade estética que considerava essenciais para uma literatura de alta qualidade. No entanto, essa perspectiva pode ser soar como academicismo. A crítica de Keene em relação à literatura proletária é semelhante à crítica portuguesa ao neo-realismo, ambos os movimentos foram vítimas de leituras reducionistas, as críticas ignoraram as complexidades dessas correntes literárias que focavam-se em retratar a realidade e promover uma conscientização social, sem a preocupação direta com a estética que alguns críticos consideram essencial. 
Assim como em contraponto, a proposta de Dirty Dancing, Flashdance e Footloose é trazer os trabalhadores para o protagonismo de histórias com finais felizes. Nestes três filmes, o objetivo é sonhar, algo que o capitalismo tenta tirar da classe trabalhadora. São contos de fadas que narram um cotidiano próximo de nós. Não há cavalos, castelos ou princesas esperando o resgate do Príncipe Encantado, mas há sonho e realidade. E entre eles não há desacordo.

Cada vez que sonha, o homem acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral, trabalha conscientemente para a realização de seu sonho. (Lenin, 1977. P,95).


Aproveitando o ensejo, desta Trinca Rítmica dos Anos 80, chegamos ao meu filme favorito e aquele com mais cara de conto de fadas: Flashdance. Este filme é um verdadeiro ícone pop da década de 1980, e seu sucesso abriu caminho para os outros dois filmes mencionados  anteriormente. O roteiro de Joe Eszterhas (de Instinto Selvagem, 1992) e Thomas Hedley Jr. (de Fúria de Vingança, 1982) combina drama e dança de maneira magistral, utilizando a fotografia de forma brilhante para construir contrastes ao longo da narrativa.
Flashdance/Paramount Pictures/Divulgação
A fotografia destaca a cidade de Pittsburgh quase como um personagem à parte, realçando sua característica urbano-industrial. Os cenários urbanos são pintados com uma paleta de cores que acentua a aspereza e a lisura do ambiente, cheio de atritos e contrastes. Um desses contrastes é habilmente apresentado pelo diretor Adrian Lyne (de Alucinações do Passado, 1990), na vida da protagonista Alex Owens, interpretada por Jennifer Beals (de O Livro de Eli, 2010). A rotina de Alex é marcada por um contraste intenso entre sua vida como operária soldadora em uma siderúrgica da cidade e dançarina no Mawby's Bar, onde alimenta seu sonho de se tornar uma dançarina profissional.
No ambiente de trabalho há contrastes marcantes também, o primeiro é construído com Alex, uma mulher, executando um trabalho considerado masculino pela sociedade patriarcal. Seguindo para o relacionamento dela com Nick Hurley, interpretado por Michael Nouri (de O Terminal, 2004), onde a diferença de idade entre eles gera um choque com a moralidade da época: ele com 38 anos e ela, 18. Alex nem possui idade legal para beber, e essa diferença de idade adquire contornos complexos, pois a dinâmica de poder entre eles está desbalanceada. 
O filme começa mostrando Alex como a única mulher em um ambiente predominantemente masculino. Todos sabem de seu segundo emprego à noite, como vemos na famosa cena da cadeira, onde Nick é apresentado e informado que paga a previdência social dela. No entanto, não vemos Alex enfrentar nenhum tipo de assédio de seus colegas; a única investida mostrada no filme é a de seu chefe, tentando invocar a narrativa do príncipe encantado. Involuntariamente, os roteiristas abrem margem para a discussão sobre a vulnerabilidade da posição da mulher no ambiente de trabalho, pois a dependência profissional e emocional coloca nossa protagonista numa posição muito frágil. Tal desequilíbrio de poder pode influenciar a capacidade de qualquer pessoa em consentir. Esse fenômeno é conhecido como vício de consentimento; em situações como a de Alex e Nick, pressões implícitas e/ou explícitas podem afetar a autonomia. É o consentimento como fruto de coação.
Ao utilizar o tropo do príncipe encantado, o filme reflete a problemática desse mito, mas o roteiro, consciente ou inconscientemente, contorna a possível dependência, enfatizando o desejo de Alex por independência. Isso é simbolicamente representado por sua luta para ser aceita na escola de dança – uma instituição predominantemente branca, contrastando com a cor e o cabelo da protagonista.

Apesar de Nick tentar interferir na entrada de Alex no instituto de dança, é através de seu próprio esforço que ela consegue, numa das sequências mais emblemáticas de dança do cinema. A direção de fotografia de Donald Peterman (de Antes Só do que Mal Acompanhado, 1987) destaca eficazmente os intensos contrastes entre luz e sombra, especialmente na cena da audição no conservatório. Nessa cena, além de Jennifer Beals, Alex Owens é interpretada por três dublês diferentes. A principal é Marine Jahan ( de Ruas de Fogo, 1984), que além dessa, executou todas as outras danças deste filme. Na catártica sequência, ao som da música vencedora do Oscar “Flashdance… What a Feeling”, cantada por Irene Cara, exigiu-se mais dois dublês de dança, a ginasta Sharon Shapiro realizou o mergulho com rolamento, que flui para o inesperado passo de breakdance, esse executado pelo pioneiro da cultura hip-hop, o b-boy Richard “Crazy Legs” Colón. 
Nesta cena complexa, mais do que no restante do filme, a cinematografia faz uso do chiaroscuro, técnica popular na pintura renascentista. Essencialmente, essa técnica cria cenas com contraste, profundidade e volume. A iluminação meticulosamente projetada enfatiza os movimentos dos quatro profissionais que compõem a performance;  só se percebe a troca de profissionais com um olhar mais atento e isso não impacta na apreciação do filme. Exemplos de filmes que usam essa técnica são O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, e Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder.
Luz e sombra não são usadas para esconder os dublês, mas para manter a magia do filme. No entanto, com a mesma beleza e maestria com que o diretor filma, ele também sexualiza com a luz e a sombra na forma como algumas mulheres entram em cena e são filmadas eroticamente. Um exemplo é a cena do restaurante, no encontro de Alex com a ex-companheira de Nick, onde duas mulheres rivalizam pelo homem, obviamente, não há problema com o erotismo, isso pode ocorrer devido à sua tendência autoral, pois Adrian Lyne é conhecido por filmes com temática erótica, sendo suas principais obras 9½ Semanas de Amor (1986), Atração Fatal (1987) e Proposta Indecente (1993), além de Infidelidade (2002) e Águas Profundas (2022). O problema é que, neste filme, em alguns momentos o erotismo perde o tom. Ora é filme família, ora é filme picante.
Posto isso, aqui, a dança não é apenas entretenimento, mas um poderoso meio de expressão e libertação. Flashdance é um conto de fadas moderno que subverte o príncipe encantado e coloca a princesa no controle de sua vida, mesmo com o clichê do final feliz.

Portanto, esses filmes que compõem a Trinca Rítmica dos Anos 80 demonstram como a onda do zeitgeist da primeira metade do século XX chegou como marola nos anos oitenta. Assim como neo-realismo português ecoou na literatura e no cinema portugueses mesmo após seu ápice criativo durante a Revolução dos Cravos (1974).  Torna-se portanto, impossível conceber o romance português do século XX sem o neo-realismo, autores como José Saramago (1922-2010) foram impactados por esse movimento. Em Levantados do Chão (1980), Saramago incorporou elementos neo-realistas, abordando temas como a realidade da classe trabalhadora e a luta pela dignidade humana. No cinema, temos O Bobo (1987), de José Álvaro Morais, que explora a luta pela identidade e liberdade, destacando a importância da arte e do teatro como formas de expressão e autoconhecimento. 
Deste modo, para o neo-realismo português e seus paralelos globais, o “Proletários do mundo, uni-vos” não foi apenas uma máxima do Manifesto do Partido Comunista (1848), mas também um chamamento para uma organização mundial de trabalhadores e, sobretudo, artistas.

Além do cinema e da literatura, no contexto político, vemos as organizações se formarem sob o que ficou conhecido como: A INTERNACIONAL. Esse movimento foi uma das influências do neo-realismo português, pois se alinhava com movimentos progressistas internacionais, como a Frente Popular na França (1936-1938) e a Resistência Antifascista na Espanha (1936-1939), refletindo a solidariedade marxista com as lutas globais pela justiça social. Não só na Europa, mas também na Ásia, mais precisamente no Japão, os artistas buscavam representar a realidade social, muitas vezes focando nas condições de vida do proletariado. 
Assim, demonstro como o zeitgeist da primeira metade do século XX é a expressão da classe proletária. Por isso, conseguimos fazer tantas aproximações como um coro de vozes, cantando a luta e resistência em um movimento que se propunha a revelar a realidade miserável dos grupos desfavorecidos e esmagados pelos seus exploradores.
As obras citadas neste ensaio convergem na representação da luta e das condições dos trabalhadores, utilizando diferentes formas de expressão artística para retratar essas realidades. Enquanto Flashdance, Footloose, Dirty Dancing utilizam a dança como uma forma de apresentar o sonho e o escapismo das dificuldades da vida cotidiana, as obras neo-realistas portuguesas e seus paralelos globais focam na realidade crua e nas lutas diárias da classe trabalhadora para incitar a luta e a revolução. Essa conexão entre sonho e realidade, expressão artística e atuação política, destaca a importância da arte na luta por justiça social ao dar voz e representação aos trabalhadores, mostrando como diferentes formas de arte podem refletir e influenciar a sociedade.

Através da capacidade de sonhar, os indivíduos encontram a motivação para empreender e realizar grandes obras na arte, na ciência e na vida prática. Assim, os contos de fadas retratados n’A Trinca Rítmica dos Anos 80 não apenas oferecem uma fuga, mas também inspiram a transformação da realidade, reforçando a ideia de que a mudança começa com a imaginação e a aspiração por um mundo melhor. Pois a luta, resistência e a arte dos proletários são o zeitgeist da primeira metade do século XX: arte doce produzida a partir do suor salgado.
Para finalizar, nas palavras da poeta, “Let your body move to the music”.
Move to the music.

Extra:

REFERÊNCIAS SELECIONADAS/LEITURA ADICIONAL
(Clique para ser direcionado!)
> Keene, Donald. Japanese Literature and Politics in the 1930s. Journal of Japanese Studies, vol. 2, n. 2, 1976, pp. 225-248. 
> MENDONÇA, Fernando. O Romance Neo-realista (cap. 03). in: MENDONÇA, Fernando. O Romance português contemporâneo, 1966.

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