Um Grito Contra a Sociedade que Mata - Chi-Raq
Pesquisando
acontecimentos recentes cheguei até a hashtag #BlackLivesMatters (#VidasNegrasImportam), foi quando Spike Lee compartilhou um curta-metragem em suas
redessociais traçando um paralelo entre a morte de Eric
Garner, George Floyd e o personagem Radio Raheem de Faça a Coisa
Certa, então fui até a filmografia de Spike Lee ver algumas coisas que
ainda não tinha visto e acabei esbarrando em Chi-Raq. Antes de tudo, Chi-Raq é
a gíria que funde os nomes Chicago e Iraque, por conta da cidade ter a maior
taxa de homicídios do EUA, Chi-Raq também é a primeira produção original do
Amazon Studios de Pass Over. A obra veio para dar voz e
rosto as pessoas mais afetadas pela violência da cidade, foi lançado em dois
mil e quinze sem barulho e não ganhou tanta repercussão.
Chi-Raq me fez
lembrar de um evento que participei um ano antes de seu lançamento, foi durante
minha graduação em Ciências Sociais, na UNESP de Marília
onde tivemos a presença de Débora Silva Maria coordenadora e
uma das fundadoras do Movimento Mães de Maio. A atividade foi realizada em
comemoração ao dia Internacional da Mulher e organizada por diversas entidades
em parceria com a Associação de Moradores do bairro Vila Barros, comunidade, até
então, considerada a maior favela da cidade, há anos sem políticas
públicas de desfavelamento e com um alto índice de vítimas de violência,
paralelo que traço ao local em que Chi-Raq foi filmado, Englewood, conhecido
como um dos bairros mais perigosos de Chicago.
A primeira atividade
foi um debate, me lembro que logo no início me emocionei, Débora começou com um
discurso pesado, sincero e político, sem medo e direcionado “EU PAGUEI A
BALA QUE MATOU MEU FILHO”, depois foi exibido o curta Mães
de Maio: Um Grito por Justiça, de Daniela Sant'ana, o curta é
composto de depoimentos das mães que tiveram seus filhos mortos por ação da
Polícia Militar em Maio de dois mil e seis no estado de São Paulo. No curta podemos
ver a barbárie que foi o ato policial matando pardos, negros e moradores da
periferia. Uma das mortes foi a de Ana Paula Santos, grávida de nove meses de
Bianca. A policia matou no dia 15, nasceria no 16. E você deve estar se
perguntando:
— O que isso tem haver com Chi-Raq?
O filme escrito por
Spike Lee de Ela Quer Tudo em parceria com Kevin
Willmott de Infiltrado na Klan evidencia a violência
sofrida pelo periférico dentro de uma releitura moderna da peça Lisístrata,
escrita por Aristófanes. O filme conta a história de um grupo de mulheres se
unindo após a morte de uma criança por uma bala perdida, em meio a uma guerra
de gangues elas organizam um movimento contra a violência. Fazendo greve de
sexo.
Agora você pode estar
achando isso surreal e questionar a eficácia do ato, porém a graça do filme
está NO FATO disto ser inspirado em “FATOS REAIS”, e a
própria narrativa de Chi-Raq aponta para Leymah Gbowee líder da greve de sexo que encerrou a Guerra
Civil na Libéria e o filme trás outros fatos também como
a Igreja
com o Jesus Preto no altar, pastor branco que usa roupa afro interpretado por John
Cusack de Quero Ser John Malkovich e as mães que aparecem com as fotos de seus entes
queridos mortos pela violência. Até a produção musical do lugar está em cena, o
que me leva a falar sobre o estilo do filme, podemos resumi-lo como
comédia-musical com uma mistura de gêneros e nessa mistura de gênero a música
se destaca, além das linhas de diálogos serem em rimas pra fazer
alusão a obra a qual o filme é inspirado e obviamente aproximar-se do RAP,
a trilha vai passando por diversas vertentes da música negra e realmente é de
fazer o sentimento chegar a flor da pele! Spike Lee é um documentarista de
mão cheia e trazer essa habilidade para seu roteiro ao mesclar fato com ficção
é genial, e isso ele aperfeiçoou com o tempo como podemos ver em Destacamento
Blood.
No elenco temos
grandes nomes, e atores que conseguem entregar um peso dramático na atuação
fora do normal como Nick Cannon que além de protagonista canta o tema que abre
o filme: Pray 4 My City, e Teyonah Parris de Se a Rua Beale
Falasse, além dos já conhecidos do diretor Wesley Snipes de Febre da
Selva, Samuel L Jackson de Lute pela Coisa Certa e
Angela Bassett de Malcolm X.
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Cartaz por Chuck |
Spike Lee tem outros
filmes que poderiam traçar o paralelo melhor com a situação de violência em que
vivemos? Sim, mas Chi-Raq, vem pedindo paz em manifestações por todo o mundo,
assim como vem acontecendo agora, a película abre mostrando a violência de Chicago,
onde houve 2.500 vítimas de armas de fogo nos dez primeiros meses de 2015,
assim misturando tragédia, comédia e sátira, romance, documentário e musical, a
trama alcança um resultado dinâmico e forte com seu enredo direto atualizando
com êxito a peça de 411 AC., inserindo em tela textos, aos quais parecem ser,
de mensagens em redes sociais de forma eficiente e extremamente elegante. Cheio
de teatralidade a impressão é de que todos os personagens estão em um palco e
que na verdade estamos assistindo a uma peça no teatro. Samuel L. Jackson
interpreta Dolmedes, que atua contextualizando os acontecimentos através de sua
poesia nos levando pela história. Devo ressaltar aqui a fusão da fotografia de
Matthew Libatique de O Plano Perfeito com a direção de
arte de David Meyer de O Lobo de Wall Street, a junção é absurda, é o que
sustenta a teatralidade e o uso da meta linguagem do roteiro, da quebra da
quarta parede até a caracterização da personagem principal, sempre usando
algum acessório que indique poder, assim criando uma aura de rainha; A obra
deixa bem claro quem e o que pertence a cada personagem através das cores,
figurinos e cenários, a estética é surpreendente. À medida que a história vai
evoluindo você vai percebendo como as cores interagem, se misturam, e pouco a
pouco vão sumindo junto com a rivalidade de cada uma das personagens, até ao
fim com todos usando uma determinada cor.
Entretanto, nem tudo
são flores, antes de preto, antes de diretor, antes de artista brilhante, Spike
Lee é homem e, claro, há um problema no filme: a sexualização das mulheres.
Spike sexualiza o corpo masculino também, mas peca na hiper sexualização do
corpo feminino, se esquecendo da capacidade cognitiva reduzida de alguns
homens, ele acaba colocando perspectivas comprometedoras podendo servir muito
mais para o fetiche que contribuindo pra narrativa. Não quero colocar Lee como
vilão aqui, ele errou assim como Quentin Tarantino em Era Uma Vez em Hollywood, isso é um ponto
incômodo que facilmente se resolveria com uma leitura sensível no projeto, mas
não deixe essa escolha narrativa do diretor te afastar do
filme, ele também trás o sexo feminino e o estigma de servirem
para o prazer e usa isso como arma e isso junto ao que já foi dito faz a película
valer cada segundo.
Na arrebatadora sequência
final o grupo de mães que clama pelo fim da violência que mata seus filhos
entra em cena, um grupo assim como as Mães de Maio, um grupo fruto
desse Estado que não é democrático e nem de direito e sim fascista e de
repressão, um grupo de mães e familiares, vítimas da violência que se
uniram em um movimento, um grito contra a sociedade que mata, lutando por uma
nova forma da segurança pública preventiva e comunitária, querendo justiça.
E
essa semelhança entre as mães do filme com as Mães de maio surge
pois Spike Lee é um cronista da experiência negra e de forma leve, mas
provocativa, evidenciando uma preocupação não só do EUA, mas do mundo,
a violência que afeta só pardo, preto e periférico, violência essa que Débora trouxe
para o debate que citei no início do texto, em momentos deixando de se usar
“Meu filho” para se referir a sua cria como “Meu morto”, ela disse “Eu tô aqui
pra ser a voz, o grito do meu morto, para conscientizar, o remédio é a luta!”,
as mães de Maio são mulheres que transformaram a dor da perda na luta por
justiça e hoje buscam um reconhecimento da sua causa para que vidas não sejam
perdidas em vão.
O filme Chi-Raq é um
misto de muitos estilos, mas em seu cerne é uma comedia musical, talvez algumas
pessoas não gostem, mas é como eu disse Spike Lee é o cronista da experiência
negra e consegue expor a violência que afeta só ao pardo, preto e
periférico, e aqui conduzindo o espectador numa leveza saborosa ele coloca
temas delicados e desconfortáveis mexendo com tabus, um provocador nato que
busca trazer reflexão de forma simples e direta, buscando o mesmo que cada
pessoa no mundo, colocando nas palavras do personagem Dolmedes:
— Paz e amor!
*
CITADO NO TEXTO
Se curtiu o filme, acesse: Chi-Raq
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